segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A opção pelo calabouço

Por que, na atual cultura punitiva, o Estado do bem-estar social dá lugar ao Estado de controle e as prisões substituem escolas.

O artigo é de Sérgio Salomão Shecaira, professor titular da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, e está publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 30-01-2011.

O mais importante traço dos últimos anos na esfera penal foi a substituição do Estado de bem-estar social pelo Estado de controle, em larga escala. Escolas, creches, hospitais e outros aparatos públicos foram trocados por prisões. Em 1994 o Brasil tinha cerca de 129 mil presos (índice de 88 presos por 100 mil habitantes). No final do ano passado, chegamos aos 500 mil (261 por 100 mil habitantes). A população brasileira (147 milhões de habitantes em 1994) evoluiu cerca de 29%, segundo dados do IBGE (191 milhões em 2010), enquanto a população carcerária chegou a um incremento de 390%!

Algumas dimensões da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado de controle devem ser destacadas. Houve uma expansão vertical por meio da hiperinflação carcerária (meio milhão no Brasil); houve uma expansão horizontal de pessoas sob controle (milhares de pessoas cumprem penas alternativas em nosso país); há um crescimento notável de dotações orçamentárias prisionais em detrimento dos gastos sociais; há uma espécie de "ação afirmativa carcerária", isto é, pobres e negros estão mais representados na população carcerária do que a elite branca; houve uma universalização desse fenômeno, pois foi uma constante em várias nações.

Grande parte desse grande encarceramento não se deveu ao aumento vertiginoso da criminalidade (que nos últimos anos chegou a decrescer em algumas esferas), mas, fundamentalmente, foi uma opção: punir mais. Legislações recentes criaram novos crimes, maximizaram penas de delitos já existentes, aumentaram as hipóteses de detenção provisórias (26% das pessoas encarceradas no Brasil aguardam julgamento), dificultaram a progressão de regime e o livramento condicional. Criou-se uma cultura punitiva. Muitos acreditam que a punição seja a solução para todos os males da humanidade.

Dois dos principais responsáveis legais por essa situação foram a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Do cotejo dessas leis com a Constituição Federal depreende-se que o tráfico de drogas é crime equiparado a hediondo e tem alguns gravames em relação a crimes comuns. Por isso, ao contrário do que acontecia nos anos 70 do século 20, quando quase 90% dos presos tinham cometido crimes patrimoniais (furto e roubo, principalmente), 20% dos atuais presos cometeram crimes de tráfico. No caso das mulheres, o número de encarceradas por tráfico é muito maior, chegando ao dobro de homens que cometeram o mesmo crime!

Pedro Abramovay, à frente da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, constatou esse fato com muita solidez. Além de programar inúmeros seminários, conclaves e congressos para ouvir a sociedade, fez estudos científicos significativos, por meio de pesquisas de largo alcance, para aquilatar o fenômeno. Criou a série de pesquisas empíricas, distribuídas tematicamente, chamando-as de Pensando o Direito.

Coube à UnB, em parceria com a UFRJ, verificar quem, como e quando era processado por tráfico de drogas. A constatação foi a seguinte: pobres eram mais condenados do que ricos e suas penas eram mais altas; negros estavam mais representados do que brancos no cometimento de crimes de tráfico, pelo principal fato de serem negros; a discriminação social era permanente na esfera da Justiça desses Estados (algo que ocorre em todo o Brasil). Quem era pobre/negro era visto como traficante. Quem era branco de classe média era visto como usuário. A rotulação individual produzia criminosos, conforme as representações sociais assim o determinavam. Traficantes não eram traficantes, mas aqueles que pareciam traficantes.

O STF também identificou essa questão, a seu modo. Passou a assegurar a possibilidade àquele que cometeu crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006 de obter penas restritivas de direitos, quando criminoso primário, sem antecedentes e sem envolvimento com organizações criminosas. Enfim, na hipótese do parágrafo 4º do artigo 33, em que a pena genericamente prevista pode ser diminuída em até 2/3, reconheceu-se a figura do "pequeno" traficante. Aquele que eventualmente pratica quaisquer das condutas descritas como tráfico não pode ter a mesma reprovabilidade daquele que comete um crime envolvido com organizações criminosas, fazendo disso seu sustento permanente.

O pecado de Pedro Abramovay foi defender que aquilo que já se sabe fosse transformado em lei. Já se sabe que a Justiça é discriminatória. Também se sabe que diferentes condutas, com gravidades diversas, são alcançadas pela alcunha de tráfico. Nada mais razoável, pois, que fazer da experiência anterior um instrumento de modificação legal. O passador eventual da droga não pode ter os mesmos gravames dos verdadeiros traficantes. Não se pode punir igualmente os desiguais, devendo eles ser considerados desiguais na medida de sua desigual conduta.

Não se combate a criminalidade com injustiças, mas sim com a Justiça. Um país que tem o ministério com tal nome tem que explicar o porquê da saída desse brilhante técnico e intelectual de seus quadros.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A cada dois dias um homossexual é assassinado no Brasil

GGB Grupo Gay da Bahia - “A cada dois dias um homossexual é assassinado no Brasil e precisamos dar um basta nesta situação”,afirmou Marcelo Cerqueira, presidente do GGB.

Um relatório divulgado na noite de quinta-feira (4) pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) informa que 198 homossexuais foram mortos no Brasil no ano passado por homofobia, nove a mais do que em 2008. De acordo com a entidade baiana, que há três décadas coleta informações sobre homofobia no país, Bahia e Paraná foram os Estados que registraram o maior índice de homicídios contra homossexuais (25 cada um).

Segundo o antropólogo Luiz Mott, um dos fundadores do GGB, dentre os homossexuais assassinados no ano passado, 117 eram gays, 72, travestis, e nove, lésbicas. “Mesmo com todos os programas lançados pelo governo federal, o Brasil é o país com o maior número de homicídios contra lésbicas, gays, bissexuais e travestis”, disse Mott, professor aposentado da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

“A cada dois dias um homossexual é assassinado no Brasil e precisamos dar um basta nesta situação”, afirmou Marcelo Cerqueira, presidente do GGB. Segundo o grupo baiano, o levantamento que contabilizou o número de gays mortos foi feito em delegacias, publicações em jornais e revistas, Internet e por outras entidades que lutam pelos direitos dos homossexuais. “Isto demonstra que o número deve ser ainda maior, porque muitas famílias têm vergonha de revelar que possuem parentes homossexuais”, acrescentou Luiz Mott.O número de gays assassinados no Brasil tem aumentado nos últimos anos. Em 2007 foram 122. “Depois do Brasil, o México (35) e os Estados Unidos (25) foram os países mais homofóbicos em 2009”, disse Marcelo Cerqueira. Os dados do GGB revelam, ainda, que entre 1980 e o ano passado foram mortos 3.196 gays no Brasil. Entre as vítimas estão padres, pais-de-santo, professores, profissionais liberais, profissionais do sexo e cabeleireiros. Do total das vítimas, 34% foram mortas com armas de fogo, 29% (arma branca), 13% (espancamento) e 11% (asfixia). Os demais 13% foram mortos por outras modalidades.Segundo o professor de filosofia Ricardo Liper, da UFBA, “mesmo em crimes envolvendo drogas e outros ilícitos, a condição homossexual da vítima sempre está presente, fruto da homofobia cultural e institucional que impregna a mente dos assassinos”.

“Se a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República não implementar as deliberações do Programa Brasil Sem Homofobia, vamos denunciar o governo brasileiro junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), e à Organização das Nações Unidas (ONU), pelo crime de prevaricação e lesa humanidade contra os homossexuais”, disse Luiz Mott.

O sofrimento dos cristãos palestinianos

Frei Bento Domingues, o.p.



1. Quando se fala da perseguição aos cristãos no Médio Oriente, não se tem em conta a situação especial na Palestina. O Conselho Ecuménico das Igrejas publicou, agora, um documento elaborado pelos cristãos e teólogos palestinos que, perante o drama do seu povo, perguntam: o que faz a comunidade internacional? Que fazem os chefes políticos na Palestina, em Israel e no mundo árabe? Que faz a Igreja? (1).

Nos limites deste espaço, o melhor é dar-lhes a palavra, porque o documento é, também, um convite às Igrejas: “vinde e vede”, conhecer os factos e descobrir as gentes desta terra, palestinos e israelenses. Condenamos todas as formas de racismo, religioso ou étnico, incluindo o anti-semitismo e a islamofobia. Vamos aos factos.

O muro da separação, construído em terrenos palestinos, confisca uma parte do nosso território, transforma as cidades e as vilas em prisões, faz cantões separados e dispersos. Gaza, depois da guerra cruel desencadeada por Israel (Dez.2008-Jan.2009), continua a viver em condições desumanas sob embargo permanente e corta-a, geograficamente, do resto dos territórios palestinos.

As colónias israelenses, ao apoderarem-se da nossa terra em nome de Deus ou da força, controlam os nossos recursos naturais, sobretudo a água e as terras agrícolas, privando delas centenas de milhar de palestinos. Esta realidade é um obstáculo a qualquer solução política.

Para nos deslocarmos ao nosso trabalho, às escolas e aos hospitais somos, diariamente, submetidos à humilhação, nos postos de controlo militar.

A separação entre os membros da mesma família, quando um dos cônjuges não é portador de um bilhete de identidade israelense, torna a vida familiar impossível a milhares de palestinos.

A própria liberdade religiosa, a liberdade de acesso aos lugares santos, é limitada a pretexto de segurança. Os lugares santos de Jerusalém são inacessíveis a um grande número de cristãos e muçulmanos da Cisjordânia e de Gaza. Os próprios habitantes de Jerusalém não podem aceder aos seus lugares santos, em certos dias de festa, assim como os nossos padres árabes não podem entrar em Jerusalém sem dificuldade.

Os refugiados fazem parte da nossa realidade. A maior parte deles vive ainda nos campos de refugiados em condições difíceis, inaceitáveis para seres humanos. Esperam o seu retorno há várias gerações. Qual será a sua sorte?

Milhares de pessoas detidas nas prisões israelenses também fazem parte da nossa realidade. Os israelenses removem o céu e a terra por um só dos seus prisioneiros, mas quando verão a liberdade esses milhares de prisioneiros palestinos que permanecem indefinidamente nas prisões israelenses?

2. Jerusalém é o coração da nossa realidade. É, ao mesmo tempo, símbolo de paz e sinal de conflito. Desde que o “muro” criou a separação entre os bairros palestinos da cidade, as autoridades israelenses não param de os esvaziar dos seus habitantes palestinos, cristãos e muçulmanos. É-lhes retirado o bilhete de identidade, isto é, o seu direito a residir em Jerusalém. As suas casas são demolidas ou confiscadas. Jerusalém, cidade da reconciliação, tornou-se a cidade da discriminação e da exclusão e, por isso, fonte de conflito em vez de fonte de paz.

Por outro lado, Israel despreza o direito internacional e as resoluções internacionais, contando com a impotência do mundo árabe e com a da comunidade internacional perante este desprezo. Os direitos humanos são violados, apesar dos múltiplos relatórios das organizações locais e internacionais.

(…) Face a esta realidade, os israelenses pretendem justificar os seus actos como actos de legítima defesa. (…) Do nosso ponto de vista, o contrário é que é verdade. Há uma resistência palestina à ocupação. Se não houvesse ocupação, não havia resistência e não haveria nem medo nem insegurança. Apelamos aos israelenses a acabar com a ocupação. Verão, então, um novo mundo, no qual não haverá nem medo nem ameaças, mas segurança, justiça e paz.

A resposta palestina a esta realidade revestiu numerosas formas. Uns escolheram a via das negociações: é a posição oficial da Autoridade Palestina, o que, no entanto, não fez avançar o processo de paz. Outros partidos políticos recorreram à resistência armada. Israel serviu-se disso como pretexto para acusar os palestinos de terroristas, o que lhe permitiu alterar a verdadeira natureza do conflito, apresentando-o como uma guerra israelense contra o terrorismo e não como uma resistência palestina legítima à ocupação israelense.

O conflito interno entre palestinos, assim como a separação de Gaza, só agravaram a tragédia. Convém notar que, embora a divisão tenha afectado os próprios palestinos, a responsabilidade depende muito da comunidade internacional, porque ela recusou acolher, positivamente, a vontade do povo palestino como ela se exprimiu nos resultados das eleições, democrática e legalmente conduzidas, em 2006.

3. (…) O Ocidente quis reparar a injustiça que tinha cometido em relação aos judeus nos países da Europa. Fê-lo à nossa custa, na nossa terra. Deste modo, reparou uma injustiça, criando outra. Mais uma vez, proclamamos que a nossa palavra cristã, no meio de qualquer tragédia, é uma palavra de fé, de esperança e de amor, sem recurso à violência.

É essa palavra que é explicitada e justificada no resto do documento que todos os peregrinos à Terra Santa deviam meditar.

(1)La Documentation Catholique, 03. 01.2010, nº24-37, pp. 33-42

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Contra o aumento das tarifas de ônibus!

Saiu no CMI e acho doido divulgar aqui! BH - Contra o aumento das tarifas de ônibus!
Por Assembleia Nacional dos Estudantes 24/01/2011 às 18:31

Lacerda: o transporte está uma vergonha! Contra o aumento das tarifas de ônibus! Lacerda: o transporte está uma vergonha!
Contra o aumento das tarifas de ônibus!

Em plenas férias escolares e em meio a vários eventos festivos promovidos pela prefeitura e as grandes empresas de Minas, o atual Prefeito de Belo Horizonte Márcio Lacerda (PSB) ?presenteou? os trabalhadores e os estudantes de Belo Horizonte com algo bastante indigesto: um aumento na tarifa de ônibus.

O aumento para os ônibus municipais foi de 6,5%, fazendo a tarifa subir de R$2,30 para R$2,45. A tarifa dos ônibus circulares também aumentou de R$1,65 para R$1,75 e a tarifa para vilas e favelas (microônibus de cor amarela) foi de R$ 0,55 para R$ 0,60. Fora os ônibus intermunicipais que em vários casos a passagem foi para mais de R$3,00. Esses dados são um absurdo considerando que o salário mínimo aumentou apenas R$1,00 por dia de trabalho, que não houve avanço na qualidade dos serviços de transporte e nem aumento significativo nos salários dos trabalhadores desse setor.

Esta medida demonstra mais uma vez que o prefeito Márcio Lacerda, governa segundo os interesses das grandes empresários, em um total descaso com os trabalhadores e a juventude belo-horizontina, que enfrenta todos os dias uma rotina de ônibus superlotados e longas esperas.

Recentemente, a câmara de vereadores aprovou um projeto de meio passe escolar (PL 1173/10). Apesar de representar uma vitória (BH nunca possuiu nenhuma lei nesse sentido), é ainda um projeto duvidoso, pois os recursos para sua implementação e o público beneficiário ficam em aberto na redação do projeto. Temos que ir para as ruas e lutar para que a pressão dos grandes empresários não acabe fazendo com que essas brechas sejam usadas para que mais dinheiro dos cofres públicos vá para essas empresas e apenas uma pequena parcela dos estudantes da cidade tenham acesso ao beneficio. As 6 famílias de empresários que dominam o setor de transporte na cidade financiam as campanhas de vereadores e prefeitos, como é o caso de Marcio Lacerda. O ?lobby do povo? a gente faz nas ruas.

Não podemos deixar que este aumento aconteça sem nenhuma resistência dos movimentos sociais. Chamamos a todos as organizações sindicais, populares e estudantis para organizar a resistência contra o aumento da tarifa dos ônibus e por uma verdadeira política de passe para os estudantes.

Em várias capitais do país como Salvador e São Paulo os estudantes já estão saindo as ruas em grandes atos contra os aumentos. Chegou a hora dos estudantes e trabalhadores de BH mostrarem suas forças.

Convocamos todos a estarem presentes na 1ª Reunião de organização do Movimento contra o aumento da passagem em BH a se realizar na Sede da CSP-Conlutas (Rua da Bahia n°504 - 3° andar - Centro) no dia 27/01 (quinta-feira) às 18h.

Aguardamos a presença de todos.

Assembleia Nacional dos Estudantes - ANEL Minas

Contato: Wardil (8745-1489), CSP-Conlutas (3271-2406)

Samuel Ruiz, bispo dos pobres e indígenas

O bispo aposentado Samuel Ruiz Garcia, conhecido como o lutador a favor dos pobres e indígenas no sul do México, morreu de complicações decorrentes de doenças de longa data no dia 24 de janeiro. Ele tinha 86 anos.

Samuel Ruiz dirigiu a diocese de San Cristobal de Las Casas, de 1960 a 2000, e, de 1994 a 1998, mediou uma comissão pelo fim pelo conflito entre o governo mexicano e o Exército Zapatista de Libertação Nacional, no estado de Chiapas.

A reportagem é de David Agren, publicada no Catholic News Service, 25-01-2011. A tradução é de Anne Ledur e revisada pela IHU On-Line.

Por seu trabalho com a população indígena do estado de Chiapas, ele recebeu ameaças de morte e, em 2002, foi ganhador do Prêmio da Paz Niwano por ajudar a "melhorar a situação social das comunidades indígenas do México" e por seu trabalho no sentido da "recuperação e preservação de suas culturas nativas".

"DonmSamuel era como o profeta Jeremias, um homem que viveu e experimentou contradição", disse Raúl Vera López, bispo de Saltillo, que serviu como bispo-auxiliar de Ruiz, de 1995 a 1999.

Vera, na missa pelo bispo Ruiz, em 24 de janeiro, na Cidade do México, descreveu Dom Ruiz como "uma pessoa cujas ações foram discutidas e condenadas por um setor da sociedade, mas, para os pobres e para aqueles que trabalharam com ele, foi uma luz brilhante, que cumpriu o que Deus disse ao profeta: 'Este dia eu te coloco sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar, para destruir, derrubar... para construir e plantar'".

Políticos, jornalistas de destaque e até mesmo um grupo de campesinos empunhando facões estampados com o nome de Dom Samuel Ruiz participaram da missa na Cidade do México. Uma missa funeral será celebrada no dia 26 de janeiro, em Tuxtla Gutierrez, com a presença do núncio apostólico, Dom Christophe Pierre.

A notícia da morte de Dom Ruiz foi manchetes em todo o país, porque ele era bem conhecido por sua defesa dos direitos humanos e trabalho de mediação em Chiapas. Mais recentemente, ele participou de uma comissão servindo como canal entre os rebeldes do Exército Revolucionário do Povo e do Ministério do Interior sobre a questão de desaparecimentos forçados.

O presidente mexicano, Felipe Calderón, disse que a morte do bispo Ruiz "constitui uma grande perda para o México."

"Samuel Ruiz batalhou para construir um México mais justo, igualitário, digno e sem discriminação, e que para que as comunidades indígenas tenham uma voz e seus direitos e liberdades respeitados por todos", disse o presidente em uma declaração.

A secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, em visita ao México no dia 24, disse: "Meus colegas dizem que ele era um mediador incansável que procurou a reconciliação e a justiça através do diálogo, e isso é exatamente o legado que devemos honrar e o exemplo que todos devemos seguir".

Ruiz sofria de hipertensão arterial e diabetes há uma década e tinha artérias obstruídas, algum dano cerebral e dificuldade de movimentar seu corpo. A gravidade de sua doença levou à sua transferência no dia 12 de janeiro para um hospital da Cidade do México a partir de um, no estado de Queretaro, conforme informou um membro da sua equipe médica à CNN.

Ruiz participou de todas as sessões do Concílio Vaticano II. Tom Quigley, ex-conselheiro de política na América Latina para a Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, disse que o bispo Ruiz se tornou mais conhecido internacionalmente através de sua participação ativa em 1968, na segunda Conferência Geral do Episopado Latino-americano, em Medellín.

"Ele era um bispo de nenhum lugar, mas tornou-se conhecido... e se tornou o centro de um caso terrível que estava acontecendo na América Latina", disse Quigley.

Em 1960, Ruiz começou a falar contra as leis Chiapas não escritas - como as que proíbem índios andar pelas ruas depois do anoitecer e - até mesmo no início dos anos 1970 - forçando-os a descer as calçadas da cidade pela sarjeta, sempre que não-índios se aproximam.

"Dom Samuel chegou em Chiapas atormentado pelas injustiças e abusos cometidos contra os povos indígenas e os pobres", disse Vera.

"Ele viu com seus próprios olhos as costas dos homens indígenas marcadas pelos chicotes dos senhores de engenho", que pagavam "três centavos por dia", e os trabalhadores eram forçados a comprar nas lojas da companhia, por preços inflacionados, afirmou Vera.

"Ele também conhecia mulheres indígenas submetidas à 'lei da primeira noite', em que os patrões tiravam a virgindade das jovens mulheres em sua contratação”, disse Vera.

Ruiz disse que sua fé o conduziu a examinar as raízes da injustiça e levou seus escritos sobre a exploração dos nativos americanos e sua pesquisa para a cosmologia indígena e teologia. No entanto, suas declarações contra a classe dos senhores poderosos foram interpretadas por alguns - incluindo alguns no Vaticano - como originário da teoria marxista de classe, ao invés do Evangelho.

Durante a visita do Papa João Paulo II de 1990 no México, os proprietários de terras publicaram uma carta aberta, acusando Ruiz de ser comunista e fomentando o ódio de classe.

Ruiz aprendeu a falar quatro idiomas maias e, muitas vezes, percorria por mulas através da sua diocese, onde era carinhosamente chamado Dom Samuel ou "Tata", que significa pai em uma língua maia.

Samuel Ruiz Garcia nasceu 3 de novembro de 1924, em Irapuato, no México. Ele foi ordenado sacerdote em 1949, após estudos na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Serviu como um reitor de seminário em Leon, no México, e foi consagrado bispo em 1960.

Em seu 75º aniversário, ele disse a quase 2 mil pessoas, que lotaram a catedral diocesana, que ele era grato a Deus por lhe ser permitido servir a diocese por quase 40 anos, e que ele tinha aprendido muito com os povos indígenas.

"Eu posso dizer que eu sou a mesma pessoa, mas que eu não sou o mesmo", disse ele. "O bispo que chegou aqui foi deixado para trás, evoluiu".

Em um ano, GT Copa do Mundo já verificou problemas e tomou providências

25/08/2010
Formado por 12 membros, o grupo do MPF tem acompanhado as ações previstas na Matriz de Responsabilidades, do governo federal
Criado há um ano, o Grupo de Trabalho Copa do Mundo do Ministério Público Federal apresentou, nesta segunda-feira, 23 de agosto, durante Encontro Nacional da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, um balanço da atuação no acompanhamento da aplicação de recursos públicos nos preparativos para a Copa do Mundo de 2014, a ser realizada no Brasil. Entre os principais problemas detectados estão obras superfaturadas e projetos básicos propositalmente deficientes para a realização de aditivos contratuais, inclusive acima do permitido em lei.

Segundo o coordenador do GT, procurador da República no Amazonas Athayde Ribeiro Costa, o objetivo é que os participantes da 5ª CCR possam aderir às expectativas do GT e fazer um trabalho preventivo coletivo. “Esse tipo de trabalho é muito mais eficaz do que ações de ressarcimento ao erário em que os recursos recuperados são ínfimos depois de desviados”, destacou.

Outros problemas detectados pelo grupo foram inércia de atuação dos próprios gestores, convênios de capacitação com controle deficitário, criação de centro de treinamentos e aplicação de verbas públicas em bens privados. O GT está preocupado ainda com a possibilidade de estouro no orçamento do evento, da mesma forma como ocorreu no Panamericano do Rio de Janeiro em 2007 - o qual gerou gastos dez vezes maiores em relação aos inicialmente previstos.

Também são alvo do grupo de trabalho inovações legislativas, por meio de medidas provisórias, além da possibilidade de incremento de verbas federais na véspera da realização das competições e a ausência de fiscalização de órgãos financiadores.

Forma de trabalho - O grupo tem acompanhando de perto as metas do governo federal, definidas no documento denominado Matriz de Responsabilidades, que traz os investimentos diretos a serem feitos para a Copa. Entre os investimentos previstos estão R$ 11,5 bilhões em aproximadamente 54 obras de mobilidade urbana, como a construção de monotrilhos e veículos leves sobre trilhos (VLT); R$ 5 bilhões destinados a reforma e ampliação de 13 aeroportos; R$ 740 milhões para sete portos; e R$ 7 bilhões em gastos com estádios.

O grupo tem realizado uma análise preventiva dos contratos referentes a esses gastos, buscando compartilhar informações e firmar parceria com os órgãos de controle, como a Controladoria Geral da União, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Estaduais.

Medidas tomadas - Em um ano de trabalho, o grupo tem atuado por meio, principalmente, de recomendações a órgãos e entidades públicas envolvidas na liberação de recursos para as obras da Copa do Mundo. “Nosso trabalho é no intuito de corrigir as ilegalidades da Copa e viabilizar o evento. É bom deixar claro que o Ministério Público não é contra a realização da Copa”, afirma Costa.

Ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e à Caixa Econômica Federal foram enviadas recomendações solicitando que exijam dos tomadores de empréstimos documentação que possibilite a adoção de projetos básicos suficientes nas obras da Copa 2014, bem como a responsabilização de projetistas, gestores públicos e pessoas jurídicas contratadas em casos de vícios nos projetos, superfaturamentos.

Outra recomendação, realizada em conjunto entre o MPF e o MP da Bahia, apontou irregularidades na parceria público-privada destinada a construção do novo Estádio da Fonte Nova em Salvador. No Distrito Federal, foram constatadas irregularidades na licitação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) de Brasília e a Caixa Econômica Federal já acatou a recomendação feita pelo MPF e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Em Belo Horizonte, o MPF e o MP de Minas Gerais solicitaram que a prefeitura e o governo do estado adotem projetos básicos com detalhamento preciso e suficiente nas licitações das obras da Copa do Mundo de 2014.

No Amazonas, outra recomendação, feita em conjunto com o MP Estadual, pede que a prefeitura adote atos para a viabilização do Bus Rapid Transit (BRT), informando que licitação emergencial realizada por inércia proposital do gestor é ilícita. Em Manaus, a Caixa Econômica suspendeu o financiamento de obras para a construção de monotrilho, após irregularidades apontadas pelo GT.

Novas providências - O grupo estuda ainda novas providências a serem adotadas após a edição da medida provisória que promoveu a desoneração tributária das obras dos estádios. Além disso, estuda novas formas de análise dos projetos básicos e propostas de licitantes nas obras de 2014, com o objetivo de corrigir defeitos de projetos e evitar superfaturamentos antes ou, pelo menos, na fase embrionária das obras.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Assentados bloqueiam estrada para impedir desmatamento

MPF/PA solicitou reforço policial ao Secretário de Segurança Pública, para evitar conflito



14/01/2011



MPF/PA

O Ministério Público Federal solicitou ao secretário de Segurança Pública do Pará, Luiz Fernandes, que envie reforço policial para o município de Anapu, na região da Transamazônica, onde assentados do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança bloquearam uma estrada para impedir a passagem de madeireiros ilegais que estão invadindo o assentamento.

As informações que o MPF recebeu são de que um conflito é iminente. Um madeireiro que entrou na área para fazer derrubadas ilegais estaria impedido de sair por causa do bloqueio. O padre Amaro Lopes de Souza, da Comissão Pastoral da Terra, se deslocou para a estrada e acompanha o impasse.

“Diante dessa situação, solicitamos envio de reforço policial urgente para a região de Anapu, para coibir quaisquer ações ilegais, evitando a retirada irregular de madeira da área e garantindo a ordem pública no municipio”, diz o ofício enviado ao secretário Luiz Fernandes e assinado pelos procuradores Alan Mansur e Daniel Avelino.

Foi no PDS Esperança que foi assassinada a missionária Dorothy Stang, em fevereiro de 2005. As invasões de madeireiros no assentamento ocorreram durante todo o ano de 2010 e houve vários flagrantes do Ibama de extração ilegal de madeira na área.

Em agosto do ano passado, depois que dois veículos de madeireiros foram incendiados, o MPF chegou a pedir apoio da Força Nacional para garantir a segurança, mas os homens não foram enviados. A falta de policiamento causou perigo inclusive aos fiscais ambientais e o governo paraense na época não fortaleceu a presença policial na região. Agora, as informações são de que a situação piorou.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O legado de Dom Helder Câmara

http://www.brasildefato.com.br/node/5464


O arcebispo desclandestinizou a pobreza existente em nosso país e induziu poder público e cristãos a encarar com seriedade os direitos dos pobres à vida digna e feliz

13/01/2011



Frei Betto



O arcebispo Dom Helder Câmara (1909-1999) é figura singular na história da Igreja Católica no Brasil. Diminuto, magérrimo, poucos o superavam em oratória: adornava as ideias com gestos efusivos e um senso de humor incomum ao se tratar de bispos. Por onde andasse, lotava auditórios: Paris, Nova York, Roma... Entre os anos de 1960-80, apenas dois brasileiros gozavam de ampla popularidade no exterior: Pelé e Dom Helder.

Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num salão capaz de comportar 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo para o Palácio de Esportes, que abriga 12 mil.



Hábitos simples

Conheci-o em 1962, ao chegar ao Rio, vindo de Minas, para integrar a direção nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Dom Helder era bispo-auxiliar da arquidiocese carioca e responsável pela Ação Católica. Vivia de seu salário como assessor técnico (aprovado em concurso público) do Ministério da Educação, morava modestamente, almoçava em botequim - ou melhor, beliscava, pois a vida toda comeu como passarinho - e subia as favelas como quem se sente em casa, sempre trajando batina, hábito mantido por toda a vida, mesmo quando o Concílio Vaticano II (1962-1965) permitiu aos clérigos saírem à rua em trajes civis.



Desde seus tempos de seminarista em Fortaleza - nascera em Messejana, hoje bairro da capital cearense - Dom Helder cultivava hábitos incomuns: deitava-se por volta das dez ou onze da noite, levantava-se às duas da madrugada, trocava a cama por uma cadeira de balanço, na qual orava, meditava, lia e escrevia cartas e poemas. Todos os seus livros foram concebidos naquele momento de “vigília”, como dizia. Às quatro retornava ao leito, dormia por mais uma hora para, em seguida, celebrar missa e iniciar seu dia de trabalho.



Com frequência Dom Helder visitava a “república” das Laranjeiras, onde se amontoavam os estudantes dirigentes da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica). Betinho (Herbert Jose de Souza) e José Serra, líderes estudantis, encontravam ali hospedagem garantida ao vir de Minas ou São Paulo.



Era Dom Helder quem nos assegurava, graças a seus relacionamentos em todas as camadas sociais, passagens aéreas pelo Brasil, bolsas de estudos, e até alimentação. Na época, o governo dos EUA, preocupado com a ameaça comunista na América Latina (sobretudo após a vitória da Revolução Cubana), lançara a campanha “Aliança para o Progresso”, que consistia, basicamente, em remeter alimentos às famílias miseráveis. Para socorrer-nos da penúria na “República”, Dom Helder, responsável pela distribuição dos donativos, nos enviava caixas de papelão contendo o que denominávamos “leite da Jaqueline” e “queijo do Kennedy”. Como os produtos ficavam meses no porto, sujeitos ao calor carioca, vários de nós tivemos problemas de saúde por ingeri-los.



Senso de oportunidade

O maior sonho de Dom Helder era a erradicação da miséria no mundo. Sonhava com o ano 2000 sem fome. Ainda no Rio, criou o Banco da Providência e a Cruzada São Sebastião, no intuito de pôr fim às favelas. Graças a doações, edificou no Leblon um conjunto de prédios, para cujos apartamentos transferiu famílias de uma favela próxima. Não deu certo. Sem recursos para pagar os impostos (luz, água, telefone...), os moradores passaram a sublocar os domicílios e a obter renda graças à venda de torneiras, pias e outras peças do imóvel.



Para angariar recursos a suas obras, Dom Helder não titubeava em comparecer a programas de auditório de grande audiência televisiva. Certa ocasião, foi convidado por um apresentador para sortear prendas expostas no palco e vistas por todos, exceto pela pessoa trancada numa cabine opaca. Calhou de ser um desempregado. “Seu Joaquim, o senhor troca isto por aquilo?” E sem nomear o objeto, Dom Helder apontava um liquidificador e, em seguida, um carro. Seu Joaquim respondia “sim” e toda a platéia vibrava. Em seguida, Dom Helder indagou se trocava o carro por um abridor de latas. O homem topou. E não mais arredou pé, cismou que escolhera a melhor prenda. Ao sair da cabine, recebeu dos patrocinadores, decepcionado, o abridor. E Dom Helder mereceu um polpudo cheque. O arcebispo não teve dúvidas: “Seu Joaquim, o senhor troca este cheque pelo abridor?”

No dia seguinte, no Palácio São Joaquim, onde funcionava a cúria do Rio, criticamos Dom Helder por ter aberto mão de um recurso que poderia reforçar suas obras sociais. Ele justificou-se: ?Perdi o cheque, ganhei em publicidade. Esperem para ver quanto dinheiro vou angariar.



Visão empreendedora

Homem carismático, dotado de forte espírito gregário, era difícil alguém - incluído quem o criticava - não se deixar envolver pela energia que dele emanava no contato pessoal. JK quis que se candidatasse a prefeito do Rio. Dom Helder jamais aceitou meter-se em política partidária; bastava-lhe, como lição, o erro de juventude, quando demonstrou simpatia pelos integralistas. Por sua iniciativa, foram fundados, em 1955, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) -, que congrega e representa os bispos do nosso Continente, e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pólo articulador dos prelados de nosso país, do qual ele foi o primeiro secretário-geral.



Bispo vermelho

Numa época em que* não havia Igreja progressista nem Teologia da Libertação, Dom Helder, graças à sua sensibilidade social e sua opção pelos pobres, era tido por comunista, difamação acentuada após a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964. Costumava comentar: “Se defendo os pobres, me chamam de cristão; se denuncio as causas da pobreza, me acusam de comunista”.



Nomeado arcebispo de São Luís (MA) no mesmo mês do golpe, antes de tomar posse o papa Paulo VI o transferiu para Olinda e Recife, onde permaneceu até morrer. Em 1972 o nome de Dom Helder despontou como forte candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Há fortes indícios de que não foi laureado por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua imagem exterior caso ele fosse premiado. Mesmo dentro do Brasil Dom Helder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o arcebispo vermelho falava era reproduzido ou noticiado pela mídia de nosso país.



A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prêmio que deveria, primeiro, ser dado ao papa... No Recife, Dom Helder lançou a Operação Esperança: promoveu reforma agrária nas terras da arquidiocese; passou a visitar favelas, mocambos e bairros pobres; estreitou laços com artistas, universitários e intelectuais. Graças ao seu poder de articulação e carisma profético, em 1973 bispos e superiores religiosos do Nordeste fizeram ecoar a primeira denúncia cabal à ditadura feita por católicos: o manifesto “Ouvi os clamores de meu povo”. O documento, recolhido pela repressão, foi divulgado através de edições clandestinas mimeografadas.



Homem de fé

Um dia, o governo militar, preocupado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo acontecesse a ele “um atentado” ou “acidente” - e a culpa recaísse sobre o Planalto, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: “Dom Helder, o governo teme que algum maluco o ameace e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos aqui para lhe oferecer segurança”.

Dom Helder reagiu: “Não preciso de vocês, já tenho quem cuide de minha segurança”. “Mas, Dom Helder, o senhor não pode ter um esquema privado. Todos que dispõem de serviço de segurança precisam registrá-lo na Polícia Federal. Esta equipe precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança”.



Dom Helder retrucou: “Podem anotar os nomes: são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

Dom Helder morava numa casa modesta ao lado da igreja das Fronteiras, no Recife. Frequentemente, as pessoas que tocavam a campainha eram atendidas pelo próprio arcebispo. Certa noite, a polícia fez batida numa favela da capital pernambucana, em busca do chefe do tráfico de drogas. Confundiu um operário com o homem procurado. Levou-o para a delegacia e passou a torturá-lo.



Pela lógica policial, se o preso apanha e não fala é porque é importante, treinado para guardar segredos. Vizinhos e a família, desesperados, ficaram em volta da delegacia ouvindo os gritos do homem. Até que alguém sugeriu à esposa do operário recorrer a Dom Helder.

A mulher bateu na igreja das Fronteiras: “Dom Helder, pelo amor de Deus, vem comigo, lá na delegacia do bairro estão matando meu marido a pancadas”. O prelado a acompanhou. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: “Eminência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?”



Dom Helder explicou: “Doutor, vim aqui porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano” “Seu irmão?!” “É, fulano de tal”, deu o nome, “é meu irmão”. “Mas, Dom Helder”, reagiu o delegado perplexo, “o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!” Dom Helder se aproximou do ouvido do policial e sussurrou: “É que somos irmãos só por parte de Pai”. “Ah, entendi, entendi”. E liberou o homem. De fato, irmãos no mesmo Pai.



Perseguições e direitos humanos

Durante o regime militar, Dom Helder moveu intensa campanha no exterior de denúncia de violações dos direitos humanos. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou criminalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Helder era financiado por Cuba e Moscou. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, amigo do governador e de Dom Helder. Não foi capaz de tomar uma posição firme na contenda. Mais tarde a denúncia caiu no vazio, não havia provas, apenas recortes de jornais.



Incomodava ao governo ver desmoralizada, pelo discurso de Dom Helder, a imagem que ele queria projetar do Brasil no exterior, negando torturas e assassinatos. Dom Helder ressaltava que, se o governo brasileiro quisesse provar que ele mentia, então abrisse as portas do país para que comissões internacionais de direitos humanos viessem investigar, como havia feito a ditadura da Grécia.



Se hoje, na Igreja, se fala de direitos humanos, especificamente na Igreja do Brasil, que tem uma pauta exemplar de defesa desses direitos, apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Helder. Nenhum episcopado do mundo tem agenda semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc. Neste ano de 2010, economia. Isso é realmente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pelo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.



A Igreja Católica e o Brasil devem muito a Dom Helder Câmara, que desclandestinizou a pobreza existente em nosso país e induziu poder público e cristãos a encarar com seriedade os direitos dos pobres à vida digna e feliz. O profeta nascido em Messejana foi, sim, um autêntico discípulo de Jesus Cristo.



Frei Betto é escritor, frade dominicano, assessor de movimentos populares, autor do romance ?Um homem chamado Jesus? (Rocco), entre outros livros. Twitter:@freibetto
A história de dois despejos arbitrários em Belo Horizonte mostra a força das pressões imobiliárias nas grandes cidades e o desprezo do poder público pela habitação popular

Por Douglas Resende e Felipe Magalhães [*]

Revista Fórum


No começo da noite de 20 de setembro de 2010, o Corpo de Bombeiros foi acionado para cuidar de um incêndio em um dos prédios das chamadas Torres Gêmeas, no bairro Santa Tereza, região leste de Belo Horizonte. Os dois prédios começaram a ser ocupados, espontânea e paulatinamente, em 1995, depois que a construtora LPC faliu e abandonou as obras já no final. Até a noite do incêndio viviam 164 famílias nos dois edifícios, principalmente pessoas que estavam em situação de rua e outras vítimas do déficit habitacional da capital mineira.

Embora o fogo não tivesse se alastrado para além do 7º andar do número 100 das Torres Gêmeas, os bombeiros, por uma questão de segurança, evacuaram todos os 17 andares do prédio. E, logo em seguida, veio o golpe contra os moradores – a tropa de choque da Polícia Militar cercou o edifício com a ordem de não permitir que voltassem a seus apartamentos. Mais de três meses depois, o lugar continua cercado, com policiais fortemente armados, 24 horas por dia.

O caso desse despejo arbitrário expõe o modo como a prefeitura municipal de Belo Horizonte tem lidado com a histórica questão, comum nas grandes cidades brasileiras, da fragilidade das políticas públicas para a habitação de interesse social e do planejamento urbano de modo geral. E alertou os movimentos sociais e os sujeitos diretamente atingidos pelo problema para a iminência de outras ações de remoção na cidade. Nove dias depois, articulados pelas Brigadas Populares (organização que atua, entre outras frentes, na luta pelo direito à cidade, moradores de mais três ocupações fizeram um acampamento na porta da prefeitura, numa forma pacífica de chamar a atenção das autoridades e da população para o risco de perderem suas moradias. A preocupação é que uma remoção em massa iria causar um grande trauma social na cidade, dada a dimensão que essas ocupações ameaçadas abrangem, envolvendo cerca de 20 mil pessoas.

Nenhuma das duas secretarias municipais procuradas para se posicionar em relação ao tema – a secretaria de Habitação e a de Governo – respondeu à solicitação da reportagem. O silêncio, neste caso, significa também omissão. A urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e relatora especial da ONU para o direito à moradia, visitou as Torres Gêmeas e a Ocupação Dandara, em outubro, e testemunhou a postura negligente da prefeitura. Ela foi uma das poucas pessoas que o prefeito Márcio Lacerda aceitou receber para tratar do assunto.

“O prefeito considera que os canais de diálogo com os movimentos de moradia já estão estabelecidos. Para ele, a abertura de um canal específico desrespeitaria o procedimento institucional, e portanto isso não seria isonômico e democrático”, conta Rolnik. “Argumentei que, embora exista uma política estabelecida, situações de extrema vulnerabilidade, como as que eu vi, não têm como aguardar anos na fila esperando a vez. E que é sempre necessário constituir outras alternativas. Além disso”, continuou a professora, “ter formas diversificadas de ação faz parte de uma política de habitação. Por fim, disse que a postura de diálogo, de negociação, de atendimento, não significa desrespeito aos canais institucionais – isso pode ser uma ação complementar da política pública. Mas não senti da parte dele uma abertura”.

Raquel explicou ainda que, segundo sua percepção, “existe uma questão ideológica da parte do prefeito de não tolerância às ocupações e seus métodos”, caracterizados como “ações políticas contra o governo”. Isso constitui um discurso muito comum no Brasil: a “desqualificação” das ações de ocupação como estratégia de se esquivar do real problema. “É bastante grave, porque estive nas ocupações e, de fato, estão ali situações de extrema vulnerabilidade. Podem ter lá dentro militantes, claro, mas você não pode reduzir aquela situação a uma situação de natureza política”.

Marasmo e oportunismo

Em 1999, a Justiça determinou a saída dos moradores das Torres Gêmeas. Mas a ordem judicial nunca foi cumprida pelo batalhão responsável da PM, que se recusou a realizar a tarefa em função da falta de solução da prefeitura para as centenas de famílias. Até então, a prefeitura de Belo Horizonte sempre havia tido uma postura passiva em relação à ocupação, nem forçando a remoção, nem buscando solução, a questão se tornou delicada dentro do contexto urbano e político da cidade – a supervalorização do mercado imobiliário, somada ao fato de as Torres Gêmeas estarem situadas em uma área central, valorizada, pressionou o município no sentido de remover os moradores. Coincidentemente, aliás, foi inaugurado, poucos dias depois do incêndio, um enorme shopping center em frente aos prédios. Todos esses fatores levantaram a suspeita de que o incêndio pudesse ter sido provocado, com a finalidade de fabricar uma justificativa para a remoção.

Margarete Leta, professora de urbanismo da UFMG e técnica do Escritório de Integração da PUC-Minas, não acredita nessa possibilidade, mas diz que o incêndio foi claramente usado para cumprir o despejo. “Foi oportunismo da prefeitura – o fogo fez para eles o que durante anos não conseguiram fazer”, disse. Leta foi corresponsável por um projeto elaborado em 2004 para a desapropriação e reforma dos prédios. A proposta foi elaborada por uma assistência técnica formada por urbanistas e pelo Serviço de Assistência Jurídica da PUC-Minas, junto com a associação dos moradores, e encaminhada a um edital de crédito solidário do Ministério das Cidades, via Caixa Econômica Federal. O projeto foi aprovado no edital, mas ficou emperrado em burocracias e não teve apoio da prefeitura. “O financiamento do crédito solidário era de até R$ 20 mil. Com R$ 18 mil por família, fizemos um estudo de viabilidade técnica e econômica que conseguiria recuperar o prédio. A prefeitura teria só que entrar para desapropriar o terreno, sendo que o pagamento da desapropriação seria feito com o próprio dinheiro do financiamento”, relembrou Leta. A situação das famílias poderia, portanto, ter sido regularizada, sem sequer exigir grandes esforços da prefeitura. “Poderia ter sido feito em 2004 como poderia ser feito agora. Só que não interessa à política pública. A gestão do PT não queria desapropriar os terrenos não sei por que motivos. A do Lacerda acho que é mais evidente: é uma política de ‘ali não é lugar para pobre’”, completou.

Assim como acontece em outras grandes cidades do país, o marasmo do poder público para tentar solucionar o déficit habitacional fica explícito aí e no desprezo a diretrizes básicas do Estatuto da Cidade, lei federal aprovada em 2001. O Estatuto prevê, por exemplo, o IPTU progressivo para áreas ociosas que não cumprem sua função social, taxando-as de forma diferenciada. De acordo com o instrumento, a partir do quinto ano de abandono, o imóvel pode ser desapropriado pelo município. “Em São Paulo, mesmo tendo uma prefeitura conservadora, do DEM, o IPTU progressivo foi regulamentado”, lembrou Joviano Mayer, liderança das Brigadas Populares. “Então não é nada, digamos, revolucionário. Até porque muitas vezes a retenção de vazios urbanos vai na contramão dos interesses de desenvolvimento do próprio capitalismo”. O usucapião coletivo urbano e a concessão real de uso são outros instrumentos presentes na lei que poderiam inclusive ser utilizados a favor dos moradores das Torres Gêmeas, há mais de 15 anos vivendo no imóvel. “No entanto, o que predomina é o interesse do capital imobiliário”, disse Joviano.

Capital imobiliário

Os conflitos presentes na capital mineira foram intensificados por circunstâncias político-econômicas particulares. O contexto em que ocorre o embate entre as ocupações e o mercado imobiliário revela os rumos tomados pela política urbana no Brasil metropolitano, após um período de grandes expectativas ligadas à aprovação do Estatuto da Cidade. Os princípios norteadores da política urbana dos últimos 15 anos se situam entre a busca pela reforma urbana, a promoção do direito à cidade e a inversão de prioridades, por um lado, e o chamado planejamento estratégico – que envolveria uma série de ações voltadas para o marketing da cidade e a promoção de sua imagem, visando à atração de investimentos, assim como de grandes eventos, e o aumento da atratividade turística. A cidade teve, nos últimos anos, uma guinada na direção desta segunda vertente, principalmente na gestão de Márcio Lacerda.

A perspectiva de uma Copa do Mundo realizada no Brasil é vista como um agravante. Há o receio de medidas higienistas na cidade, numa versão do Choque de Ordem carioca. Não por acaso, uma ocupação que já era vista como consolidada, conhecida como Recanto UFMG e situada na avenida Antonio Carlos, a 500 metros do estádio do Mineirão, está em vias de remoção. “Utiliza-se a Copa do Mundo como pretexto para medidas segregatórias, e criam-se cidades mercadorias”, comentou Joviano.

É marcante neste contexto o fato de que o mercado imobiliário urbano vem tendo nos últimos anos um intenso processo de valorização, cujas causas passam substancialmente pelo aumento da renda e uma maior facilidade de acesso ao crédito, permitindo financiamentos de longo prazo para uma camada mais ampla da população. Isso impulsiona uma demanda por moradias em patamares inéditos no Brasil. Na capital mineira, essa valorização atinge também os bairros de padrão popular, potencializando ganhos sem precedentes para os incorporadores imobiliários capazes de encontrar áreas para expansão e adensamento no município, de território bastante pequeno para padrões de grandes metrópoles.

No entanto, como lembrou a professora Leta, a valorização exclui financiamentos para “as faixas de 0 a 3 salários mínimos, dos créditos solidários, do programa Minha Casa, Minha Vida, que ficam esvaziados. Ninguém quer construir para essa faixa”. Isso gera pressões de expulsão da população de baixa renda da capital para os municípios vizinhos, tornando ainda mais urgente a problemática metropolitana na cidade e região. A dinâmica imobiliária geralmente está por trás de amplos processos de transformação nas cidades, historicamente tendo força inclusive de influenciar diretamente as ações do poder público, seja no provimento de infraestrutura ou na definição de regras de uso e ocupação do solo. Isso muitas vezes acontece de forma desligada de um planejamento mais amplo e de longo prazo.

Segundo o urbanista Tiago Castelo Branco, esse poder do mercado de influenciar as regras pode ser visto claramente no caso da Dandara, ocupação organizada na região norte de Belo Horizonte, de cujo planejamento participou como técnico. Os proprietários deixaram o terreno vazio – ele não tem tido qualquer uso desde os anos 1970 – porque a legislação municipal para a região lhes impedia de viabilizar economicamente um empreendimento ali. Enquanto isso, o terreno “engordava”, num mercado em virtuosa ascensão, e ainda podiam esperar por uma mudança na legislação. “Eles sabem que conseguem pressionar [o poder público] na hora de votar uma nova lei. São poderosos, vão em peso...”, comenta o urbanista.

Soma-se a isso o fato de que o entorno imediato da ocupação vem sendo objeto de interesse de grandes construtoras – a MRV e a Tenda compraram, recentemente, uma grande fazenda vizinha do terreno. As construtoras também se interessam pela remoção das famílias para que seus lançamentos imobiliários não sejam desvalorizados no mercado em função da proximidade de uma área de ocupação de baixa renda. Ou seja, trata-se de um caso em que a dinâmica de pressão dos capitais imobiliários na direção da expulsão da população pobre se concretiza de forma mais crua e radical, promovendo um conflito aberto com a ocupação, que se torna uma pedra no caminho da valorização da área.

Dandara

Se por um lado há a franca ineficácia da política pública urbana, muito aquém da demanda por moradia, por outro existe o poder de auto-organização da sociedade. A Ocupação Dandara vem chamando atenção por suas particularidades e sua inserção nesse contexto mais amplo da política habitacional de Belo Horizonte. Situada no bairro Céu Azul, ao norte da Pampulha, a ocupação foi iniciada em abril de 2009, com cerca de 150 famílias, e atualmente é composta por aproximadamente 900, segundo lideranças da comunidade. As Brigadas Populares (inicialmente em conjunto com o MST) foram os responsáveis por articular a ocupação da área de cerca de 40 hectares em meio a bairros consolidados.

A Dandara tem uma diferença fundamental da maioria das áreas que passam por processos semelhantes de urbanização espontânea: o planejamento da ocupação. Joviano Mayer defende que “a Dandara não reproduz o processo de favelização – lá existe um projeto urbanístico, do qual as famílias participaram, junto com profissionais da Arquitetura, da Geografia, do Direito. Há uma preocupação ambiental, porque é uma área que tem nascente e um dos poucos cursos d’água a céu aberto que banham a lagoa da Pampulha”. Assim, na criação do projeto foi delimitada uma área de preservação, não loteada, como apontam Margarete Leta e Tiago Castelo Branco ao abrir uma planta do projeto sobre a mesa, em uma sala da Escola de Arquitetura da UFMG.

Além disso, não há becos na área da ocupação. “São ruas com uma extensão satisfatória, com uma grande avenida de trinta metros de largura”, continuou Joviano. “Os lotes, de 128m², favorecem uma construção na qual a família pode viver dignamente. Então não somos – como muitas vezes a prefeitura nos acusa – responsáveis por começar uma favelização. Pelo contrário – somos uma solução à favelização.”

Esse planejamento, acrescentou Castelo Branco, “cria condições para o município lançar toda uma infraestrutura urbana de forma muito mais barata que em uma favela”. Ou seja, planeja-se cuidadosamente uma apropriação de um terreno ocioso, que não cumpre função social há 40 anos, centenas de famílias passam a ter perspectiva de resolver seu problema de moradia e elas mesmas constroem suas casas, restando ao município o papel de aplicar a legislação urbanística, desapropriando o terreno, e de oferecer infraestrutura, pois já se trata inclusive de um espaço urbano legal, com ruas, numeração.

Segundo Margarete Leta, “a política habitacional não enxerga a cidade como um todo, como um sistema. Se você olhar a região da Dandara, são áreas de cabeceiras, de cursos d’água. Não é à toa que são Zonas de Proteção, e devem ter uma ocupação menos adensada. Então esse modelo de ocupação para baixa renda com lotes individuais, do ponto de vista ambiental, é ideal. No entanto não é isso que vai ser feito, se essa população for tirada de lá.”

A professora Silke Kapp, do grupo Morar de Outras Maneiras (MOM) da UFMG, ressalta que é fundamental não perder de vista o fato de que a moradia das camadas de renda mais baixa é um problema inerente à cidade capitalista, devido ao simples fato de que “o salário mínimo é um salário de subsistência”, que não inclui no seu cálculo nem o dinheiro do aluguel nem o da prestação. A isso se soma a questão do acesso à terra na cidade. “Temos uma tradição longa de reserva de terra para rico e classe média, e nunca se fez a mesma coisa para a massa trabalhadora”, disse a professora. “Esse tipo de reserva contraria a lógica do capital. É engraçado porque todo mundo diz assim, ‘vamos fazer muita moradia para pobre, porque aí a gente aquece a economia’. Mas ao mesmo tempo, é predominante a opinião de que você não deve fazer essa reserva de terra. Então hoje, aqui em Belo Horizonte, tem muito financiamento que não tem terra para colocar a moradia – porque todos os empresários concordam que tenha financiamento e nenhum concorda que tenha reserva de terra. Tem uma contradição nessa história.”

[*] Felipe Nunes Coelho Magalhães: felmagalhaes@gmail.com

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Propostas para o Ministério de Promoção Humana R.C.C. - BH

Ministério de Promoção Humana R.C.C. BH

“É viva a palavra quando são as Obras que falam”. Sto. Antonio

O Ministério de Promoção Humana é um ministério de evangelização. Nascemos para evangelizar, a Igreja existe pra isso. E temos como prioridade a evangelização dos pobres, dos marginalizados, dos excluídos, dos sofredores, de todos que experimentam na sua vida a paixão de Cristo.
Entendemos que a evangelização deve ser integral, que deve considerar a dimensão humana espiritual, e chegar também na sua realidade concreta. Cristo não veio salvar somente almas, mas o homem todo. Devemos por isso, trabalhar para dar uma resposta eficaz diante as necessidades do nosso próximo.
Por isso a nossa evangelização deve "descer" nas realidades de modo que as encontre e remedie. E assim procurar se necessário agentes públicos, governos, etc.
É preciso fugir do assistencialismo, de uma atitude "caritativa" de superioridade, que humilha e leva à dependência. Devemos ver o outro como um sujeito de direitos e não como um "objeto" de caridade. Não dar por caridade o que é devido por justiça.
Devemos ter a sede de Cristo que é também sede de Justiça. "bem aventurados os que tem fome e sede de Justiça". Por isso não podemos ser apáticos, indiferentes, ao mundo em nossa volta, mas agir. É preciso viver uma experiência de fé, não alienada, que tenha o coração em Deus e os pés no chão. Trabalhar para a construção do Reino de Deus. Venha a nós o vosso Reino! Deve ser um grito forte dos nossos corações.
O M.P.H. deve ser estruturado em cada Grupo de Oração, de modo que esses possam se fazer próximo das realidades em sua volta. E assim discernir qual é a melhor atividade a realizar, ver os talentos de cada membro do G.O. e orientar para que esses produzam frutos. Que nenhum dos nossos passem por essa vida sem dar os frutos esperados por Deus.
Objetivos do Ministério de Promoção Humana:
-É nossa prioridade a evangelização nas favelas, nas áreas de prostituição, nos hospitais, nas cadeias, comunidades ameaçadas de despejos, nas áreas de mais graves conflitos sociais. Evangelização em asilos, creches.
-Ajudar a organização das comunidades na luta por seus direitos.
-Fortalecer as lutas sociais.
-Promover meios de inclusão social, acesso ao trabalho e prevenção às drogas.
-Fomentar na R.C.C. o senso de cidadania e responsabilidade social. Fazer campanhas de arrecadação de alimentos, roupas, etc.
-Devemos caminhar com autonomia, unidade e comunhão com as diversas Pastorais Sociais já presentes na nossa Arquidiocese. Pastoral de Rua, da Mulher Marginalizada, etc. Com as Novas Comunidades que desenvolvem trabalhos sociais e mesmo com outras comunidades cristãs, fortalecendo o ecumenismo.
Em local onde maior for a necessidade de Justiça, ali devemos ser instrumentos de Paz

promocaohumanarccbh@yahoo.com.br Tel. (031) 32738781

domingo, 16 de janeiro de 2011

Os desafios do indigenismo brasileiro hoje

Entrevista especial com Mércio Gomes


Para Mércio Gomes, a política indigenista atual vive uma situação de anomia. Em entrevista concedida por email à IHU On-Line, Mércio avalia a situação dos povos indígenas brasileiros e a politização em torno das decisões sobre o futuro e o destino dos índios no país. “A anomia não acomete só o órgão indigenista e sua incapacidade de diálogo, mas os próprios indígenas que se sentem lesados e abandonados pelo descaso das autoridades e não sabem o que fazer para encontrar seu próprio caminho diante das dificuldades atuais. No ano passado mais de 500 índios acamparam diante do Ministério da Justiça durante seis meses para protestar contra o Decreto 7506 e pedindo a destituição da atual direção da Funai. Debalde, no pouco que foram ouvidos foram ignorados nas suas demandas”, exemplificou.

Mércio Pereira Gomes é professor de Antropologia, com doutorado pela Universidade da Florida (EUA). Leciona na Universidade Federal Fluminense. Trabalhou com o antropólogo, político e educador Darcy Ribeiro, de quem foi subsecretário de Planejamento da Secretaria Especial de Projetos e Educação, no governo do Rio de Janeiro (1990-1994), tendo ajudado a planejar e construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública. Foi presidente da Funai entre setembro de 2003 a março de 2007, durante o governo Lula.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a política indigenista atual vive uma anomia?

Mércio Pereira – Em primeiro lugar, porque a política indigenista brasileira está paralisada diante dos problemas criados pela atual direção da Funai. Ela não consegue mais avançar nas demarcações de terras porque, por intempestividade e por ilusionismo político, provocou os fazendeiros e até invasores recentes (como no caso Marãiwatsede) a não aceitar mais abrir mão das terras que consideram suas por ressarcimento de suas benfeitorias, e porque o STF favoreceu os fazendeiros no acórdão da homologação da T.I. Raposa Serra do Sol, de 19 de março de 2009, ao declarar que terra indígena é somente aquela que os índios ocupavam ao tempo da promulgação da Constituição Federal, isto é, outubro de 1988, uma data quase mística e irreal, que inviabiliza as demandas por recuperação de terras perdidas em outros tempos pretéritos. Por isso é que nos últimos quatro anos a Funai só homologou 16 terras indígenas e não demarcou nenhuma, uma queda brusca em relação às 67 dos primeiros quatro anos do governo Lula.

Em segundo lugar, porque o Decreto 7506/09, assinado pelo presidente Lula a pedido da atual direção da Funai, desestruturou a Funai e levou-a a uma paralisia administrativa. Grandes e importantes administrações, como Recife, Curitiba, Altamira, Oiapoque, Porto Velho, Goiânia, São Luis, Campinápolis, Redenção, São Félix do Xingu e outras mais foram fechadas e os seus encargos foram levados para outras administrações a centenas de quilômetros de distância, a maioria sem capacidade de absorver novos encargos e serviços.

"A Funai está sem posicionamento sobre assuntos que lhe eram de sua alçada, como educação, saúde, especialmente doenças oriundas do branco"
Em terceiro lugar, os impasses administrativos e políticos se amontoam e não permitem saída pelos parâmetros tradicionais. Além dos graves problemas com demarcação e administração, a Funai está sem posicionamento sobre assuntos que lhe eram de sua alçada, como educação, saúde, especialmente doenças oriundas do branco, como alcoolismo, diabetes, etc., incentivo econômico, comercialização de artesanato, participação política e outras.

Em quarto lugar, houve uma partidarização da Funai, bem como da Fundação Nacional de Saúde - Funasa, no segundo governo Lula, a tal ponto que mais vale ser do PT do que ser indigenista ou mesmo técnico indígena. Assim, a Funai foi tomada por partidários sem compromisso histórico com a causa indígena.

Por fim, a voz indígena de raiz não se faz presente no órgão indigenista. Caciques e lideranças tradicionais não são recebidos pelas autoridades, nem nas administrações onde devem ser assistidos. A Funai atualmente só escuta os índios ligados a associações, que, por sua vez, são diretamente ligados às ONGs ambientalistas e indigenistas. Quando precisa consultar sobre assuntos que lhes interessam, como impactos de empreendimentos hidrelétricos e estradas, terminam consultando apenas suas lideranças comprometidas, não as lideranças de raiz. Daí a grande insatisfação nos casos Belo Monte, na extinção de administrações e postos indígenas, etc.

A anomia não acomete só o órgão indigenista e sua incapacidade de diálogo, mas os próprios indígenas que se sentem lesados e abandonados pelo descaso das autoridades e não sabem o que fazer para encontrar seu próprio caminho diante das dificuldades atuais. No ano passado mais de 500 índios acamparam diante do Ministério da Justiça durante seis meses para protestar contra o Decreto 7506 e pedindo a destituição da atual direção da Funai. Debalde, no pouco que foram ouvidos foram ignorados nas suas demandas.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas para os povos indígenas brasileiros que se delineiam a partir do governo Dilma?

Mércio Pereira – Se nada mudar, são as piores possíveis, com a desvalorização da Funai, a anomia indígena e indigenista, o aumento da participação do Congresso na política indigenista, a favor de fazendeiros, a estadualização da educação, a incapacidade de equilibrar a saúde indígena, sem falar no impasse das demarcações e nos conflitos com o PAC.

IHU On-Line – Como ela irá conciliar as obras do PAC com a manutenção da vida e cultura indígenas naqueles territórios onde vivem essas comunidades?

"A Funai está dominada por pessoas que têm compromisso mais com as ONGs de onde vieram do que com a política indigenista de Estado"
Mércio Pereira – Aí é que está, não faço a mínima ideia, não com a atitude que predomina entre os quadros que tratam da questão indígena! Em uma hora, dizem que escutam os índios via conselho indígena, em outra dão licenciamento sem consultar os índios de raiz, e estes protestam. Os índios Gaviões querem fazer seu próprio estudo para decidir se aceitam uma hidrelétrica que os impactem e a Funai põe barreiras na sua determinação. A Funai está dominada por pessoas que têm compromisso mais com as ONGs de onde vieram do que com a política indigenista de Estado. Muito menos com o indigenismo rondoniano. Aí as contradições afloram com muita força e, no limite, resultam em decisões pessoais e forçadas por autoridades superiores, sem o consenso dos índios. Parece que este foi o caso do licenciamento da Usina Belo Monte.

IHU On-Line – Quais são os maiores motivos que fazem os índios não serem reconhecidos no Brasil em sua cultura e dignidade?

Mércio Pereira – Não sou daqueles que acham que os índios são desprezados no Brasil. Acho que a sociedade civil brasileira tem um sentimento positivo em relação aos índios. Ela acha que os índios devem ser respeitados, manter suas terras e preservar suas identidades indígenas e ao mesmo tempo participar na comunidade maior, sem perder sua cultura. Em outras palavras, acho que o espírito rondoniano prevalece na sociedade brasileira. Exceto nas regiões onde há uma concorrência muito grande por terras e recursos naturais, ou na atual política de desenvolvimento da Amazônia. Aí campeia um desrespeito figadal, odiento. Há momentos em que o sentimento positivo cai e vira negativo. Tudo depende das circunstâncias econômicas e culturais. Nesse momento estamos vivendo um sentimento de indiferença, se não de negatividade para com os índios. Até a imprensa está indiferente.

IHU On-Line – Quais são as principais mazelas que acometem nossos índios? Que políticas públicas têm sido pensadas para oferecer uma vida digna às comunidades indígenas?

Mércio Pereira – A falta de terras para uma parte deles, como os guarani, os índios do Sul do Brasil e do Nordeste, a saúde de diversos povos, lembrando a alta mortalidade infantil entre os xavante, o alcoolismo em muitos deles, o desrespeito dos munícipes das cidades novas do Centro-Oeste e da Amazônia recém-colonizada, o arraigado preconceito no Sul do Brasil, as ameaças de destituição de terras, os projetos econômicos, os madeireiros, os ousados garimpeiros, enfim, são muitas as mazelas.

Quanto às novas políticas públicas, acho que estão devendo em todos os aspectos. A Funai não tem verbas suficientes, nem mais até vontade para exercer sua assistência. A saúde tem sido aquinhoada com boas verbas, mas a Funasa nunca conseguiu dar um sentido de bem-estar aos índios, apesar do seu substancial crescimento demográfico. Faltou-lhe sempre uma visão indigenista da saúde e desvio de verbas públicas. A educação, que saiu do governo federal, da Funai, para os estados e municípios, é uma vergonha. Nem se sabe por que oferecem esse tipo de educação, porque no mais das vezes deseduca os índios de suas culturas e não os encultura equilibradamente na cultura brasileira. Há uns 3 a 4 mil índios nas faculdades, mas isto se deve ao esforço hercúleo de cada um deles individualmente, não a uma política clara e com propósitos explícitos.

IHU On-Line – Pode-se dizer que está em curso um extermínio dos povos indígenas em nosso país? Por quê?

Mércio Pereira – A situação indígena atual é difícil e sofrida, mas a ideia de extermínio dos povos indígenas está fora do esquadro, é propaganda para atrair a atenção de financiadores do exterior. A questão indígena é uma questão da identidade nacional e deve ser tratada exclusivamente por brasileiros. A população indígena cresce, mesmo que com muito sofrimento, 85% das terras reconhecidas estão demarcadas ou em processo de demarcação, e o Brasil não tem política de discriminação aos índios.

IHU On-Line – Quais são os principais avanços e limitações da política indigenista rondoniana?

Mércio Pereira – Os avanços são evidentes: (a) o reconhecimento da cidadania indígena e de sua participação na formação do Brasil; (b) a responsabilidade do Estado, em todas suas instâncias, pelo reconhecimento da especificidade indígena, de suas culturas, e a responsabilidade por sua sobrevivência étnica; (c) a demarcação de terras indígenas e o usufruto exclusivo de suas riquezas aos índios; (d) o ideal da multiculturalidade brasileira.

As limitações são evidentes também: (a) capacidade limitada de reconhecer a autonomia dos povos indígenas; (b) dependência do Estado em relação à proteção dos povos indígenas; (c) elaboração limitada de políticas públicas que efetivem a autonomia dos índios junto com sua participação na vida nacional.

IHU On-Line – O que o senhor compreende por “indigenismo cristão"?

Mércio Pereira – É aquele que considera o índio um ser incompleto por sua essência cultural, e que, portanto, precisa virar cristão para ser um ser completo. Se não fosse por essa concepção, talvez a Igreja tivesse uma contribuição mais positiva na história da sobrevivência dos povos indígenas. O histórico cristão é ruim tanto no passado quanto no presente, apesar de sua retórica veemente.

"Para o indigenismo cristão o índio não tem futuro, só salvação, só redenção"
As culturas indígenas são completas, autointegradas, e estão num mundo muito complexo de contradições. Não são representações dos oprimidos e dos abandonados da Terra. São culturas diferenciadas que precisam ser entendidas por nós, mas que também precisam nos entender para melhor enfrentar as dificuldades que lhes atravessam. O indigenismo cristão-cimista foge do seu passado e pretende trazer uma redenção forçada, messiânica e irreal, realçando aquilo que não pode ser remediado, como o passado. Aliás, seu passado nem é avaliado devidamente, como no caso da expulsão dos jesuítas pelo Tratado de Madri e a destruição dos guarani da região Sul do Brasil. Ademais, esse indigenismo se comporta como se o Estado estivesse contra os povos indígenas, como se todos estivessem contra os povos indígenas, o que o torna bitolado para compreender o mundo atual. Para o indigenismo cristão o índio não tem futuro, só salvação, só redenção.

IHU On-Line – Nesse sentido, quais são as principais críticas e acertos do indigenismo cristão?

Mércio Pereira – Bem, as críticas estão acima. Os acertos se devem tão unicamente ao espírito de transcendência cristã, que, ao final, considera o homem universal e as culturas como representações do divino. Os cristãos que têm essa visão adquirem um comprometimento mais humanista, menos redencionista, mais amoroso e mais leal aos índios e à condição humana.

IHU On-Line – Em que sentido o propósito básico do indigenismo cristão é uma “contradição em termos”?

Mércio Pereira – No sentido de que o indigenismo tem que compreender o outro em si (o índio) e buscar equipará-lo ao mesmo (sociedade não indígena). O radicalismo redencionista cristão exclui a ideia de que o outro tem valor em si. Daí a contradição das ações indigenistas cristãs-cimistas.

IHU On-Line – Como essas duas ideologias indigenistas (rondoniana e cimista) dialogam entre si? Em que aspectos há um rompimento ou avanço de proposições?

Mércio Pereira – O indigenismo rondoniano é laico, acredita que as religiões indígenas têm que ser respeitadas, que os índios são culturalmente autônomos, mas que eles precisam da ajuda do Estado e da nação como um todo para sobreviver diante de uma sociedade economicamente mais forte e ameaçadora.

Considero que, em alguns momentos de sua história, o indigenismo rondoniano e o cristão-cimista coincidiram com essa visão. Por exemplo, na defesa dos índios durante o regime militar, na aliança com indigenistas nessa ocasião, nos primeiros anos da redemocratização e em outros momentos esparsos e pontuais.

Porém, o indigenismo cristão-cimista foi tomado pelo espírito redencionista e saiu fora de esquadro. De lá para cá tem tido uma atitude antiestado que desfavorece a compreensão da situação do Brasil e dos índios em particular. Está imbuído de um espírito jesuítico à la Missões dos Sete Povos, isto é, contra o Estado a todo custo, o que resultou na destruição dos guarani daquela região, e não ao modo vierista, de lutar pelos índios com vigor, mas encontrando caminhos possíveis.

IHU On-Line – O que é especificamente o indigenismo neoliberal? Em que medida ele é um reflexo do tipo de capitalismo que está se praticando atualmente?

Mércio Pereira – O indigenismo neoliberal reflete os tempos atuais de capitalismo consumista, antiestado, antinação e anti-identidade. Os membros praticantes dessa forma de indigenismo não têm qualquer escrúpulo em apelar para agentes estrangeiros para tratar de assuntos indígenas brasileiros, "Os membros praticantes dessa forma de indigenismo não têm qualquer escrúpulo em apelar para agentes estrangeiros para tratar de assuntos indígenas brasileiros"
naturalmente expondo as dificuldades brasileiras como se os brasileiros não fossem capazes de resolvê-los. Isso aconteceu muito e de diversas maneiras no tempo da ditadura militar, mas agora já é demais. Há uma ONG que trata da questão dos índios isolados e usa a Funai como uma plataforma para obter recursos de fora, de empresas estrangeiras que se dizem a favor do meio ambiente e dos povos indígenas, de agências de fomento europeia e até da USAID.

O indigenismo neoliberal está ligado ao movimento ambientalista, de onde recebe parte de seus recursos, luta contra os empreendimentos na Amazônia, porém não se incomoda em fazer os estudos etnoambientais desses empreendimentos. Também tem um pé no Estado, de onde recebe verbas em forma de convênios e concessões. Trabalha, portanto, nessa ambiguidade e com isso deixa os índios sem saber a qual senhor serve. Para o Estado, e também para o indigenismo rondoniano, o correto seria dizer que é contra o desenvolvimento da Amazônia e se fixar nisso. Ou dizer que é a favor do desenvolvimento da Amazônia e que nesse processo quer a participação dos índios tanto na constituição do melhor modo (econômico, social, ambiental) de obter esse desenvolvimento quanto na participação sobre os lucros e vantagens, em os havendo.

O indigenismo neoliberal presume que está defendendo os índios do Estado e da sociedade civil e econômica. Mas quem são eles e de onde vêm, se não da sociedade civil e econômica? Na verdade, eles acabam sendo ferramentas inconscientes de um jogo político-econômico que mal discernimos, e nisso metem os povos indígenas à revelia de suas vontades e posicionamentos.

IHU On-Line – Quais são os maiores ensinamentos que os povos originários do Brasil podem oferecer aos demais povos que compõem nossa nação?

Mércio Pereira – Em primeiro lugar, sua originalidade cultural e histórica, que deve ser respeitada em si e como fator de identidade nacional. Em segundo lugar, seu modo de viver e equilibrar suas ações com a natureza. Em terceiro lugar, sua inteligência criativa que um dia florescerá, se o mundo abrir-se a eles.

Um índio morre a cada 12 dias em reserva no AM

Segunda maior terra indígena do país, a Vale do Javari, no Amazonas, teve nos últimos 11 anos uma morte de índio a cada 12 dias, segundo levantamento da ONG Centro de Trabalho Indigenista.

A reportagemé de Felipe Bächtold e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 16-01-2011.

O total de mortes no período soma 325, o equivalente a 8% da população da terra indígena, afirma a entidade.

Com área equivalente ao dobro do Estado do Rio de Janeiro, a Vale do Javari, na fronteira com o Peru, reúne uma das maiores concentrações de índios isolados do mundo. A população é estimada em 4.000.
Um dos povos que habitam a terra, o canamari, perdeu 16% de seus habitantes, diz a ONG. A maior parte dos mortos (64%) tem até 10 anos - são sobretudo bebês.

As principais causas são hepatite, pneumonia e doenças trazidas pelo contato com populações de fora da terra indígena. Também há relatos de alto índice de suicídios.

A ONG atribui a situação à má gestão de recursos por parte da Funasa (Fundação Nacional de Saúde).
A responsabilidade sobre a saúde dos índios passou neste ano da Funasa para secretaria do governo federal ligada ao Ministério da Saúde.

Uma das dificuldades é a falta de pistas de pouso para aviões na região, uma das mais inacessíveis do país e rota do tráfico de drogas.

Para a coordenadora do Centro de Trabalho Indigenista, Maria Elisa Ladeira, a Vale do Javari precisa, por suas características, de uma estratégia diferente das demais terras indígenas.

O pico de mortes ocorreu em 2007, com 46 casos. A ONG diz que termos de ajustamento de conduta foram firmados na época pelo Ministério Público com os órgãos envolvidos, mas que não houve progresso.
Comparando com média de mortalidade da população brasileira apontada pelo IBGE, o índice de mortalidade indígena da terra Vale do Javari é 18% maior.

OUTRO LADO

A recém-criada Secretaria da Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, afirma que o Vale do Javari é prioritário nas ações da pasta.

O secretário Antônio Alves de Souza diz que os problemas no local, como surtos de hepatite, já são conhecidos.

Ele também menciona as dificuldades de transporte. "Há locais que se gasta mais de dez dias para chegar".

Segundo o secretário, o ministério prepara a contratação de profissionais e a compra de equipamentos, como barcos.

Uma equipe da secretaria já foi à terra indígena por 15 dias para fazer um "diagnóstico" e outras duas serão enviadas. O plano, afirma, é "reestruturar" as ações de assistência na área.

A Funai (Fundação Nacional do Índio) também fala em dificuldades por causa das grandes distâncias da terra.

A fundação cita que as longas viagens de barco comprometem a remoção de doentes. Afirma, no entanto, que promoveu nos últimos dois meses ações de atendimento emergenciais. A Funasa não se manifestou.

O preço de não escutar a natureza

Leonardo Boff, filósofo/e teólogo

O cataclisma ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro - Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo -, na segunda semana de janeiro de 2011, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação provocam freqüentemente deslizamentos fatais.
Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que distribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal desta tragédia avassaladora.
A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco, pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrário, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.
Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que aí viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores.
Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água. Chico Mendes com quem participei de longas penetrações na floresta amazônica do Acre sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.
No caso das cidades serranas: é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmoronamentos de encostas. Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais freqüentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nesta parte não se pode construir e morar.

Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio.
Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.
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A hipocrisia das Organizações Globo na hora da tragédia
Fonte: blog do Nassif:
Numa hora dessas o mais importante é a solidariedade. Não é hora de fazer política. Mas também é uma indignidade usar de hipocrisia, como fazem os veículos das Organizações Globo.
A capa de O Globo mostra a demagogia numa hora dessas. Cobra das autoridades federais verbas para a prevenção de tragédias, para a contenção de encostas. Essa cobrança mereceria os meus aplausos se fosse pra valer.
Mas não dá pra esconder, que em outubro do ano passado, o governador Sérgio Cabral desviou R$ 24 milhões do FECAM (Fundo Estadual de Conservação do Meio Ambiente), para a contenção de encostas e obras de drenagem e deu para a Fundação Roberto Marinho, conforme poderão relembrar, na reprodução abaixo. Eu fiz a denúncia no blog, no dia 20 de outubro de 2010 e não saiu uma linha na imprensa.
Então não venham de hipocrisia. Os mesmos veículos das Organizações Globo que estão cobrando investimentos públicos – o que é emergencial, é claro – escondem que a fundação dos seus patrões, a família Marinho pegou R$ 24 milhões, dados por Cabral, que era para terem sido usados na prevenção de enchentes e contenção de encostas. É tudo lastimável.
Ninguém vai morar em área de risco porque quer ou porque é burro
Raquel Rolnik, relatora da ONU para a Moradia digna disse: “Na última terça-feira, dia 11/01/2001, participei do Jornal da TV Cultura, falando sobre o problema das chuvas que atingem várias regiões do nosso país nesta época do ano. Depois da apresentação de uma reportagem que mostrava deslizamentos de encostas e perdas de vidas em várias cidades, a primeira pergunta do apresentador Heródoto Barbeiro foi: "isso tem solução?"
Segue abaixo a minha resposta:
"Tem solução, sim. Evidentemente algumas medidas são paliativas. Há formas de intervenção para melhorar a estabilidade dos terrenos, drenar melhor a água, conter encostas, ou seja, melhorar a condição de segurança e a gestão do lugar para que, mesmo numa situação de risco, se possam evitar mortes.
Mas a questão de fundo é que ninguém vai morar numa área de risco porque quer ou porque é burro. As pessoas vão morar numa área de risco porque não têm nenhuma opção para a renda que possuem. Estamos falando de trabalhadores cujo rendimento não possibilita a compra ou aluguel de uma moradia num local adequado. E isso se repete em todas as cidades e regiões metropolitanas.
Não adiantam nada as obras paliativas aqui e ali se não tocarmos nesse ponto fundamental que é: quais são os locais adequados, ou seja, fora das áreas de risco, que serão abertos ou disponibilizados para que a população de menor renda possa morar?".
Quem quiser assistir a edição completa do telejornal, pode acessar o site da TV Cultura no seguinte link: http://www.tvcultura.com.br/jornal-da-cultura/programa/jc20110111

14/1/2011

''Brasil não é Bangladesh. Não tem desculpa'', afirma consultora da ONU

"O Brasil não é Bangladesh e não tem nenhuma desculpa para permitir, no século XXI, que pessoas morram em deslizamentos de terras causados por chuva." O
alerta foi feito pela consultora externa da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, Debarati Guha-Sapir. Conhecida como
uma das maiores especialistas no mundo em desastres naturais e estratégias para dar respostas a crises, Debarati lançou duras críticas ao Brasil. Para
ela, só um fator mata depois da chuva: "descaso político."

A entrevista é publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-01-2011.

Eis a entrevista.

Como a senhora avalia o drama vivido no Brasil?

Não sei se os brasileiros já fizeram a conta, mas o País já viveu 37 enchentes, em apenas dez anos. É um número enorme e mostra que os problemas das chuvas
estão se tornando cada vez mais frequentes no País.

O que vemos com o alto número de mortos é um resultado direto de fenômenos naturais?

Não, de forma alguma. As chuvas são fenômenos naturais. Mas essas pessoas morreram, porque não têm peso político algum e não há vontade política para resolver seus dramas, que se repetem ano após ano.

Custa caro se preparar?

Não. O Brasil é um país que já sabe que tem esse problema de forma recorrente. Portanto, não há desculpa para não se preparar ou se dizer surpreendido pela chuva. Além disso, o Brasil é um país que tem dinheiro, pelo menos para o que quer.

E como se preparar então?

Enchentes ocorrem sempre nos mesmo lugares, portanto, não são surpresas. O problema é que, se nada é feito, elas aparentemente só ficam mais violentas.
A segunda grande vantagem de um país que apenas enfrenta enchentes é que a tecnologia para lidar com isso e para preparar áreas é barata e está disponível.
O Brasil praticamente só tem um problema natural e não consegue lidar com ele. Imagine se tivesse terremoto, vulcão, furacões...


14/1/2011

Não é a chuva que deve ir para a cadeia

"Os brasileiros estão perdendo mais uma chance de bater com força no projeto de lei número 1876/99, que o deputado Aldo Rabelo transfigurou, para enquadrar
o Código Florestal nos princípios do fato consumado", escreve Marcos Sá Corrêa, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 14-01-2011.

Pois, segundo o jornalista, o 'novo' Código Florestal, "reduz à metade as áreas de preservação em margens de rio, dispensa da reserva legal propriedades
pequenas ou médias e consolida os desmatamentos ilegais. Nunca foi tão fácil saber aonde ele quer chegar, folheando as fotografias aéreas das avalanches
em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Dá para ver nas imagens o que havia antes nos pontos mais atingidos. É o que o novo Código Florestal vai produzir
no campo".

Eis o artigo.

Das surpresas do clima, quem pode falar por todos os políticos com conhecimento de causa são os faraós egípcios. Eles, como o ex-presidente Lula, agiam
como enviados do céu à Terra. E, ao contrário do ex-presidente Lula, não falam desde que saíram de cena, a não ser por intermédio de escribas e hieróglifos.

Mas, como encarnações do Sol, se o Sol fracassava lá em cima, eram arrancados do trono cá embaixo, surrados e cuspidos no fundo do Nilo. Tudo porque o rio
deixava de inundar o delta que nutria seu reino agrícola. Lá, o regime político mudava conforme o regime do rio. Tornava-se violento e insurreto até o
Nilo voltar à normalidade, irrigando uma nova dinastia.

As vítimas dessas tragédias políticas e climáticas não tinham, na época, como saber que as cheias do Nilo eram regidas pelas chuvas de monção do Sudeste
Asiático, que por sua vez dependiam de ventos conjurados pela temperatura das águas no Oceano Pacífico, do outro lado da terra, na costa da América do
Sul, um lugar mais distante que o Sol do cotidiano egípcio.

O culpado da desordem era um fenômeno natural que só entrou há duas décadas no noticiário internacional, com o nome de El Niño. Mas deixar o clima fazer
seus estragos à solta, em Tebas ou Mênfis, tinha custo político, porque da regularidade do rio dependiam vidas humanas. O preço era injusto, cruel e exorbitante.
Como é injusto, e talvez seja também cruel e exorbitante, que hoje não se processe no Brasil, por homicídio culposo, o político que patrocina baixas evitáveis
e supérfluas em encostas carcomidas e vales entulhados por ocupações criminosas.

No dia em que um prefeito, olhando as nuvens no horizonte, enxergar a mais remota possibilidade de ir para a cadeia pelas mortes que poderia impedir e incentivou,
as cidades brasileiras deixariam aos poucos de ser quase todas, como são, feias, vulneráveis e decrépitas. De graça ou com o dinheiro virtual do PAC, os
políticos não consertarão nunca a desordem que os elege.

Não adianta ameaçá-los com ações contra o Estado ou a administração pública, porque o Estado e a administração pública, na hora de pagar a conta, somos
nós, os contribuintes. O remédio é responsabilizar homens públicos como pessoas físicas pelos crimes que cometem contra a vida. Às vezes em série, como
acaba de acontecer na região serrana do Rio de Janeiro.

O resto é conversa fiada. Ou, pior, papo de verão em voo de helicóptero, que nessas ocasiões poupa às autoridades até o incômodo de sujar os sapatos na
lama. Pobres faraós. O longo e virtuoso o caminho civilizatório que nos separa de seu linchamento está nos levando de volta à impunidade anárquica das
entressafras dinásticas, quando a favelização lambia até as suntuosas muralhas de Luxor.

Linchar um político não é a mesma coisa que malhar seus projetos. E os brasileiros estão perdendo mais uma chance de bater com força no projeto de lei número
1876/99, que o deputado Aldo Rabelo transfigurou, para enquadrar o Código Florestal nos princípios do fato consumado. Ele reduz à metade as áreas de preservação
em margens de rio, dispensa da reserva legal propriedades pequenas ou médias e consolida os desmatamentos ilegais. Nunca foi tão fácil saber aonde ele
quer chegar, folheando as fotografias aéreas das avalanches em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Dá para ver nas imagens o que havia antes nos pontos
mais atingidos. É o que o novo Código Florestal vai produzir no campo. Mais disso.



14/1/2011

Ministério da Catástrofe

Para o simples viajante pelas paragens de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, "o futuro já estava escrito na parede", comenta Ruy Castro, escritor,
em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 14-01-2011.

Eis o artigo.

Funcionários de pelo menos cinco ministérios - Meio Ambiente, Cidades, Transportes, Bem-Estar Social e Integração Nacional - já deviam ter passado pelas
estradas por fora de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo nos últimos anos e observado que a ocupação das encostas, por pobres e ricos, na região serrana
do Estado do Rio não podia acabar bem.

Para mim, simples viajante por aquelas paragens, o futuro já estava escrito na parede. A favelização das encostas era algo que chocava, pela velocidade,
até quem levou a vida acompanhando o mesmo espetáculo nos morros do Rio. Custava a crer que os próprios prefeitos e governadores tolerassem tal abscesso
numa área que vive de sua beleza e tradição.

Pelo visto, esses ministérios, apesar dos nomes, têm outras atribuições que os impedem de enxergar o óbvio. Donde a solução pode estar na criação de mais
um ministério, de função explícita e exclusiva: o Ministério da Catástrofe. Teria a atribuição de tentar prevenir tragédias onde elas estivessem sujeitas
a acontecer, lutar para que não acontecessem e, no caso de mesmo assim elas se materializarem, avaliar os estragos e o custo da recuperação, mandar o dinheiro
e cuidar para que fosse aplicado.

Você dirá que são atribuições de mais para um ministério e, afinal, elas já competem àqueles outros ministérios. Talvez. Mas quem sabe assim as verbas prometidas
pelo governo federal a cada catástrofe não passem a chegar na íntegra aos que precisam delas, e não apenas uma avara fração do dinheiro prometido, como
de praxe?

Você dirá também que já temos ministérios demais, que este seria o 38º no leque em mãos da presidente Dilma e tão inútil quanto, digamos, o Ministério da
Pesca. É verdade. Mas pense na necessidade que o governo tem de acomodar os derrotados do seu partido em cargos de poder e com acesso a verbas.

Deslizamento é um dos dez maiores do mundo, diz ONU

O drama que assola a região serrana do Rio já está entre os dez piores deslizamentos do mundo nos últimos 111 anos. O número de vítimas do desastre ultrapassou
o de uma tragédia na China que até então ocupava a décima posição no ranking da ONU - ainda não atualizado. Além disso, o deslizamento desta semana já
é o segundo maior do mundo no último ano e o terceiro maior da década.

A reportagem é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-01-2011.

Os dados fazem parte do banco de estatísticas do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres. A entidade com sede na Bélgica fornece os números
oficiais da ONU para avaliar respostas a desastres naturais pelo mundo. A organização coleta dados desde 1900. Para especialistas, problemas semelhantes
ao do Rio já vêm sendo registrado no Brasil há anos e as explicações estão na falta de vontade política e de investimentos.

Até ontem, o ranking dos dez piores deslizamentos no mundo tinha como nono e décimo lugares, respectivamente, desastres no Peru (600 mortos) e China (500).
Até o fechamento desta edição, às 23h45, 510 pessoas haviam morrido no Rio.

O maior desastre relacionado a um deslizamento de terra, porém, aconteceu em 1949, na União Soviética, com 12 mil mortos. O segundo maior foi no Peru, em
dezembro de 1941, e deixou 5 mil vítimas.

Apesar da grande quantidade de água que desceu morro abaixo, especialistas brasileiros e a própria ONU classificam o fenômeno natural como deslizamento,
e não enchente - que tecnicamente ocorre quando o nível de água de um rio sobe além do normal e destrói casas construídas nas margens. Isso também ocorreu,
mas grande parte da destruição e das mortes foi causada pelos deslizamentos.

O evento também é o pior deslizamento de toda a história do Brasil. Ele superou em número de vítimas o registrado em 1967, em Caraguatatuba, quando 436
pessoas morreram. A tragédia desta semana é a segunda pior catástrofe climática do País - também em 1967, uma enchente no Rio matou 785 pessoas. No topo
da lista está uma epidemia de meningite de 1974 em São Paulo, ainda contabilizada pela ONU como o maior desastre natural do País.

Últimos 12 meses

Em um ano, o desastre fluminense também já entra para os registros da ONU, superado apenas por um incidente em agosto de 2010 na China, com 1,7 mil mortos.
Na década, apenas dois deslizamentos de terra foram mais mortais que o do Estado do Rio desta semana. Além do que ocorreu no ano passado na China, as Filipinas
registraram um desastre desse tipo em 2006, que deixou 1.126 mortos.

Não é a primeira vez que o País aparece com destaque na lista de desastres naturais. Em 2008, o Brasil foi o 13.º país mais afetado por desastres naturais.
Pelo menos 2 milhões de pessoas foram atingidas, principalmente por chuvas. Só as de Santa Catarina, em novembro daquele ano, atingiram 1,5 milhão de pessoas.

Segundo especialistas, as vítimas poderiam ter sido poupadas. Em 2009, o Brasil subiu na escala e foi o 6.º país no mundo a enfrentar o maior número de
desastres naturais. O alerta na época havia sido do Departamento para a Redução de Desastres da ONU.

Segundo a estimativa, dez desastres naturais atingiram o Brasil entre janeiro e dezembro de 2009. Grande parte relacionada a chuvas torrenciais, deslizamento
de terra e enchentes.

Desastres

Na década, o Brasil sofreu mais fenômenos devastadores que países tradicionalmente afetados por problemas naturais, como México e Bangladesh. A liderança
é das Filipinas, com 26 casos em 2009. A China vinha em segundo, com 23, seguida pelos Estados Unidos, com 16 desastres naturais em 2009.

No total, 181 pessoas morreram no Brasil em 2009 por causa de chuvas, deslizamentos e enchentes. Em abril, 56 pessoas morreram com alagamentos e deslizamentos
no Nordeste. Em dezembro, São Paulo teve 23 mortes e prejuízo de US$ 8,4 milhões. No mesmo mês, houve ainda mais 72 mortes por deslizamentos no Rio.

No mundo, os desastres naturais mataram 10,4 mil pessoas em 2009. Foram, no total, 327 incidentes, com prejuízos de US$ 34,9 bilhões.



14/1/2011

Memórias recorrentes

"O remanejamento da população é caro, mas deve ser feito", afirma Heloisa Magalhães, jornalista, em artigo publicado no jornal Valor, 14-01-2011.

Eis o artigo.

Era 11 de janeiro de 1966, exatamente 45 anos antes da noite de início da tragédia na serra fluminense. Morava com minha família em uma casa no Cosme Velho
construída por meu pai, engenheiro calculista. Para quem não conhece, é o bairro onde está a estação do bondinho de acesso ao Cristo Redentor, um vale
entre belas encostas do Rio.

Acordamos, de madrugada, com uma chuva apavorante. Na véspera, já fôramos surpreendidos pela descida de parte da encosta atingindo os fundos da casa. Nada
sério, mas na noite seguinte foi diferente, foi o dia em que o Rio enfrentou uma das grandes tragédias causadas por chuvas de verão. Morreram 140 pessoas.
Um edifício inteiro caiu no bairro de Santa Tereza, matando grande parte dos moradores.

Naquela noite, terra e lama invadiram até o teto do primeiro andar da nossa casa, cobrindo e destruindo móveis e objetos na sala de estar, cozinha e varanda.
No momento do desmoronamento, por sorte, os quatro filhos, estavam todos no quarto dos pais e ninguém foi atingido.

Passado o pânico com o barulho estonteante de montanhas de terra caindo e quebra dos vidros das janelas, vizinhos, solidários, vieram nos socorrer levando
a família para suas casas, rua acima. Tudo debaixo de chuva torrencial.

Passado o susto, meu pai tratou de estudar geotécnica. Projetou um sistema de proteção na encosta no morro atrás da casa, cujo topo vinha silenciosamente
sendo ocupado por moradias irregulares.

A terra jamais voltou a invadir a casa. Mas, por muitos anos, a cada verão, mesmo depois dos filhos terem seguido rumo próprio, bastava uma chuva forte
para todos, tentando mostrar calma, telefonarem para saber se estava tudo bem por lá.

O Rio de Janeiro vive históricas e seculares enchentes. O jornal "Extra" mostrou, ontem, que apenas entre 2001 e 2010, todos os anos morreram pessoas vítimas
de enchentes, totalizando 554 óbitos. Este ano, já houve 444 mortos identificados na região serrana fluminense.

Certamente muitas análises e mapeamentos já foram feitos, e a cidade reduziu as consequências protegendo encostas, deslocando moradores em áreas de risco.

Mas o que se sabe é que há planos que ficam nas prateleiras. Em Teresópolis, por exemplo, a defesa civil, na gestão passada, produziu um relatório detalhado
e um chamado Plano Municipal de Redução de Riscos. Na atual, o plano foi refeito. A proposta era localizar todas as áreas de risco invadidas e tirar a
população. Mas segundo uma fonte que acompanhou o processo, praticamente nada foi realizado.

A doutora em geografia do meio-ambiente Ana Luiza Coelho Netto, do Instituto de Geociências, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende uma
ação ampla. Diz que o momento é um alerta para ser repensado o modelo de planejamento da ocupação de toda a região Sudeste, principalmente as áreas mais
montanhosas. Ela lembra que nelas há deslizamentos, independentemente da presença humana. O problema é que hoje as terras são ocupadas desordenadamente,
seja pela agricultura ou por habitações dos de baixa renda ou não, causando importantes perdas, e com isso acabam se configurando grandes catástrofes.

"Atrás das cicatrizes dos deslizamentos ficam clareiras nas encostas, perdendo-se elementos que dariam resistência ao solo. Com planejamento adequado, as
chuvas de grande magnitude não impediriam o deslizamento, mas não atingiriam a dimensão das perdas que estamos assistindo", afirma.

O também professor e economista da mesma UFRJ, Mauro Osório, estudioso do Estado, lembra que há décadas se sabe que a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
conta com áreas abaixo do nível do mar. Uma delas é a Praça da Bandeira, perto do estádio do Maracanã, onde há um rio com o mesmo nome, parte dele canalizado,
e as enchentes se repetem ano a ano.

Ele reconhece que foram realizadas muitas obras de contenção de encostas na cidade e que, ainda na década de 60, foi criado um instituto equivalente a atual
GeoRio. Como muitos municípios não têm condições de arcar com os custos dos estudos de ocupação e processos de recuperação de encostas, sugere na linha
da professora Ana Luiza a realização de um planejamento amplo, a adoção de um modelo de consórcios unindo prefeituras e o governo do Estado para a região
serrana, em especial, contar com um trabalho permanente de proteção das encostas.

Osório lembra que o Estado do Rio de Janeiro sofreu com uma "lógica de políticos clientelistas" que não trabalharam com planejamento, facilitando invasão
moradia em lugar precário causada, em boa parte, pela ausência de alternativa.

Sergio Besserman, ambientalista, membro do conselho diretor da WWF-Brasil que trabalha no tema mudanças climáticas desde 1992, avalia que não há solução
de curto prazo e destaca que o diagnóstico é de três agendas.

Uma delas é a "do passado", a da ocupação irregular, sem planejamento. "Ninguém fez nada na área de habitação e as pessoas tem que morar. Saíram procurando
lugares mais baratos e vulneráveis. Mas, obviamente, não é possível realocar todas as pessoas da noite para o dia, é preciso tempo. No Rio, há 18 mil casas
em locais de risco. Custa caro o remanejamento, mas os governos vão ter que lidar com isso". Essa é a agenda do presente.

Ele destaca, contudo, que há "a agenda do futuro e as notícias não são boas". Ele avalia que neste verão choveu como há 40 anos atrás e "não pode se afirmar
que foi o aquecimento global, mas o certo é prever que vai voltar a chover assim e não vai mais demorar 40 anos para acontecer. As chuvas serão com mais
frequência e intensidade", alerta.


14/1/2011

Estudo mostra que medidas básicas de prevenção poderiam salvar muitas vidas

"Uma vergonha nacional." Assim o professor Luiz Pinguelli Rosa, diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (Coppe/RJ), define a catástrofe que abalou a região serrana do Estado, destruindo o centro de Nova Friburgo e bairros de Petrópolis
e Teresópolis. "São recorrentes esses desastres", diz, resgatando da memória em alguns segundos pelo menos quatro grandes tragédias parecidas nos últimos
40 anos.

A reportagem é de Janes Rocha e publicada pelo jornal Valor, 14-01-2011.

Para ficar só nos episódios mais recentes, Pinguelli lembrou dos temporais seguidos de deslizamentos de terra que causaram morte e destruição em Santa Catarina,
em 2008. Atendendo o pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Coppe fez sugestões para prevenir e mitigar os efeitos das chuvas naquele Estado.
Em meados de janeiro de 2010, pouco depois de calamidade parecida em Angra dos Reis, e novamente atendendo a pedidos, dessa vez do Estado do Rio de Janeiro,
a Coppe entregou um documento com propostas semelhantes.

Basicamente foi sugerido: mapeamento das áreas de risco em encostas e planícies sujeitas a deslizamentos e enchentes; criação de núcleos de profissionais
em geologia; aquisição de radares meteorológicos; implantação de um programa permanente de educação ambiental e gestão de risco de enchentes e deslizamentos;
definição de critérios técnicos para adaptação da legislação para uso e ocupação do solo; criação de um grupo de trabalho com especialistas para apoiar
tecnicamente a implementação das medidas.

A adoção dessas medidas depende tanto do governo do Estado - a quem foi entregue o estudo - quanto dos municípios, aos quais estão atribuídas, por lei,
algumas tarefas, como a definição dos critérios para uso e ocupação do solo. Segundo Pinguelli Rosa e o professor de Geotecnia do Coppe, Willy Alvarenga
Lacerda, Angra dos Reis fez rapidamente a remoção de 500 casas e construção de um muro de contenção.

A avaliação de ambos é que a maior parte das medidas que dependiam do município foram tomadas, exceto as mais de fundo, que são a educação ambiental e adaptação
da legislação de ocupação do solo. O risco de uma nova tragédia foi eliminado? "Não", responde Lacerda. "Mas pelo menos as medidas estão sendo tomadas."

Pinguelli critica a falta de medidas básicas, que não custam nada comparadas à quantidade de vidas que podem ser salvas em casos de temporais com enxurradas
e deslizamentos de terra. Primeiro, a contratação de radares meteorológicos. Esse equipamento, que custa apenas R$ 2,5 milhões a unidade (com instalação),
é capaz de prever e informar a aproximação de tempestades e outros fenômenos climáticos de grande intensidade com antecedência. No entanto, o Brasil tem
apenas 11 deles, a maioria pertencente à Força Aérea, utilizados exclusivamente no controle do tráfego aéreo.

A recomendação do Coppe ao governo fluminense foi atendida em dezembro, quando a Fundação Instituto de Geotécnica do Município (Geo-Rio) começou a operar
um radar no morro do Sumaré, no Parque Nacional da Tijuca. Há um radar da Aeronáutica no Pico do Couto, em Petrópolis, mas mesmo que estivesse a serviço
da sociedade civil, não teria ajudado muito desta vez, porque ele quebrou na segunda-feira, uma noite antes da tragédia, disse Pinguelli.

De forma geral, diz o diretor do Coppe, não falta só prevenção, organização e política habitacional. "Aqui (no Brasil) não tem nem sequer um alerta", diz
o diretor do Coppe, comparando com os Estados Unidos e Europa, em que sirenes, rotas de fuga e abrigos estão sempre à disposição da população que vive
em áreas sujeitas a catástrofes naturais, e não apenas quando elas acontecem. "Os governos estaduais e municipais mantêm sistemas de alerta (climático),
inclusive partilhado com as empresas, mas nada chega a população. Toda a sociedade deveria ser alertada, tem que haver uma organização social e política.
Pelo menos teria que haver um alerta sonoro."