CASO SÉTIMO GARIBALDI - nova Ter, 10 de Novembro de 2009 15:12
PARCIALIDADE E INOPERÂNCIA:
A TERCEIRA CONDENAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO NA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DA OEA
INTRODUÇÃO
No dia 27 de novembro de 1998, vinte pistoleiros encapuzados entraram no acampamento do MST na Fazenda São Francisco, no município de Querência do Norte, região noroeste do Paraná. Armados e afirmando serem policiais, os homens iniciaram um despejo extrajudicial violento. O trabalhador rural Sétimo Garibaldi foi baleado na coxa e, sem atendimento, morre em seguida.
Quase cinco anos haviam se passado quando, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as organizações Justiça Global, Terra de Direitos e Rede Nacional dos Advogados Populares (RENAP), diante da morosidade e da suspeita de conivência das autoridades responsáveis pela investigação e pelo processamento judicial do caso, iniciaram o trâmite no Sistema Interamericano de Direitos Humanos da OEA. Um ano depois, o caso ainda seria arquivado na Justiça Brasileira pela juíza Elisabeth Khater, sem a devida fundamentação.
Agora, passados onze anos do assassinato de Sétimo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA anuncia a sentença em que condena o Estado brasileiro pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, em prejuízo da viúva e dos filhos de Sétimo Garibaldi.
A OEA considerou o país culpado pela não responsabilização dos envolvidos no assassinato de Sétimo Garibaldi e afirmou que o caso expõe a parcialidade do judiciário no tratamento da violência no campo e as falhas das autoridades brasileiras em combater milícias formadas por fazendeiros.
É a terceira vez que o Estado brasileiro é condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a segunda que envolve crimes contra trabalhadores rurais sem terra no Paraná. Em agosto, a OEA havia responsabilizado o país por grampos ilegais contra integrantes do MST na mesma região do assassinato de Sétimo, em um caso que também teve participação da juíza Khater.
As sentenças condenatórias da OEA saem em um momento em que interesses políticos reforçam a criminalização e a perseguição ao MST. Há menos de um mês, foi instaurada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar supostas irregularidades em financiamentos do Governo Federal a entidades de promoção da reforma agrária.
MAIS SOBRE O CASO
A morte de Sétimo Garibaldi se deu em uma ação de cerca de 20 pistoleiros encapuzados que fizeram uma desocupação extrajudicial de um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Logo depois, policiais que haviam recebido denúncia do ataque prendem em flagrante Ailton Lobato, administrador da Fazenda Mundaí, com um revólver não registrado que tinha uma cápsula deflagrada. Apesar do flagrante, Lobato foi solto em seguida.
Com a conivência das autoridades locais, o inquérito do caso foi arquivado e ninguém foi denunciado, apesar dos indícios e das inúmeras testemunhas que garantiram que a ação foi comandada pelo fazendeiro Morival Favoreto e pelo capataz Ailton Lobato.
O caso do assassinato de Sétimo foi denunciado em 2003 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que foi informada ainda do posterior arquivamento não fundamentado do inquérito policial. Em 2007, a CIDH submeteu o caso à Corte, o que resultou, agora, na condenação do Estado brasileiro.
A juíza Khater e a parcialidade do judiciário
Quem deferiu o pedido de arquivamento do inquérito sem a devida fundamentação foi a juíza Elisabeth Khater, a mesma juíza que foi flagrada por um jornalista da Folha de S. Paulo comemorando com fazendeiros uma desocupação de trabalhadores. Foi Khater também que compactuou com os grampos ilegais em integrantes do MST na mesma região do assassinato de Sétimo. Este caso resultou, em agosto, na segunda condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
A CRONOLOGIA DO CASO SÉTIMO
27 de novembro de 1998 – Cerca de 20 pistoleiros encapuzados entram no acampamento do MST na Fazenda São Francisco às cinco horas da manhã, afirmando serem policiais; o grupo é chefiado por dois homens sem capuz. Sétimo Garibaldi recebe um tiro na coxa e morre sem atendimento. Logo depois, policiais que haviam recebido denúncia do ataque prendem em flagrante Ailton Lobato, administrador da Fazenda Mundaí, com um revólver não registrado que tinha uma cápsula deflagrada.
3 de dezembro de 1998 – Diversas testemunhas prestam depoimento e afirmam terem reconhecido Ailton Lobato e o fazendeiro Morival Favoreto como os homens sem capuz. Não sendo localizado Morival Favoreto para prestar esclarecimentos, o delegado Arildo de Almeida requere sua prisão temporária.
9 de dezembro de 1998 – Diante das evidências, o Ministério Público pede que sejam providenciadas diligências. A promotora Nayani Kelly Garcia afirma: “Conforme consta no inquérito, Morival foi um dos co-autores do homicídio da vítima Sétimo Garibaldi, tendo sido reconhecido por diversas testemunhas.”
14 de dezembro de 1998 – Elisabeth Khater, então juíza da Comarca de Loanda, apesar da argumentação do MP, INDEFERIU O PEDIDO DE PRISÃO com um simples despacho, sem a fundamentação necessária.
17 de dezembro de 1998 – Cezar Napoleão Ribeiro, escrivão de polícia, sustenta que o disparo da arma de Ailton Lobato havia sido feito para o alto por ele – Cezar – para que um veículo saísse do caminho, logo após a prisão em flagrante do administrador da Mundaí. Sem fundamento algum, disse que ninguém havia visto Lobato e Favoreto no ataque ao acampamento.
9 de março de 1999 – Morival Favoreto finalmente presta depoimento, mais de três meses depois do crime. Afirma que estava em São Bernardo do Campo - SP no dia do assassinato de Sétimo.
24 de março de 2000 – Em novo depoimento, Morival Favoreto afirma que a caminhonete usada no ataque ao acampamento, que estava registrada em seu nome, não lhe pertencia mais, tendo sido vendida em agosto de 1998 para Carlos Eduardo Favoreto da Silva, que, por sua vez, a revendeu para Clidenor Guedes de Melo em novembro. Nenhum dos dois seria chamado a depor.
28 de setembro de 2000 – Quase dois anos depois da morte de Sétimo, Eduardo Minutoli, primo de Morival Favoreto, afirma que este estava em São Bernardo do Campo em 27 de novembro de 1998.
25 de julho de 2002 – Quase quatro anos depois da morte de Sétimo, o médico Flair José Carrilho não pode afirmar com clareza que Morival Favoreto esteve de fato em seu consultório em São Bernardo do Campo no dia 25 de novembro de 1998, como havia sido sustentado.
6 de maio de 2003 – CPT, Justiça Global, MST, RENAP e Terra de Direitos enviam petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA denunciando morosidade nas investigações e suspeitas de conivência de agentes do Estado.
5 de fevereiro de 2004 – Inicia-se o processamento na CIDH.
12 de maio de 2004 – A despeito de todos os indícios da autoria do crime e dos álibis frágeis apresentados pelos acusados, o MP requere o ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL, depois de quase seis anos de inoperância. A juíza Elisabeth Khater defere o pedido sem fundamentação adequada.
24 de dezembro 2007 – Diante do não-cumprimento das recomendações da CIDH pelo Estado brasileiro, o caso do assassinato de Sétimo Garibaldi é submetido à CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DA OEA.
20 de abril de 2009 – Menos de dez dias antes da audiência na Corte, o Ministério Público solicita a reabertura do caso.
29 e 30 de abril de 2009 – Audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Santiago do Chile.
5 de novembro de 2009 – A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA anuncia a sentença condenatória aos peticionários.
9 de novembro de 2009 – Iracema Garibaldi, Vanderlei Garibaldi e representantes das organizações e movimentos sociais peticionários se reúnem em Curitiba para anunciar à imprensa a condenação do Estado brasileiro.
O CONTEXTO
O caso aconteceu durante o governo de Jaime Lerner no Paraná, em meio a um processo violento de perseguição aos trabalhadores rurais e aos movimentos sociais paranaenses. Autoridades e ruralistas se uniram em uma campanha que resultou em um aumento dos índices de violência no campo no estado e que, através do uso da máquina do Estado, possibilitou atos de espionagem e criminalização contra trabalhadores organizados.
‘O Arquiteto da Violência’
Durante a “Era Lerner”, entre 1994 e 2002, foram assassinados 16 trabalhadores rurais no estado, além de consumadas 516 prisões arbitrárias. As mortes ocorridas neste período repercutiram internacionalmente e Lerner passou a ser chamado de “arquiteto da violência”, em referência a sua formação de urbanista e arquiteto. Além dos assassinatos, a Comissão Pastoral da Terra registrou na época 31 tentativas de homicídio, 49 ameaças de morte, 7 casos de tortura e 325 pessoas vítimas de lesões corporais em conseqüência de conflitos por terra.
A SENTENÇA
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA declarou, por unanimidade, que
o Estado violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em prejuízo de Iracema Garibaldi [viúva de Sétimo], [e aos filhos] Darsônia Garibaldi, Vanderlei Garibaldi, Fernando Garibaldi, Itamar Garibaldi, Itacir Garibaldi e Alexandre Garibaldi. (p.204)
A Corte apontou a morosidade das forças policiais e da Justiça. Para a OEA,
as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência no Inquérito da morte de Sétimo Garibaldi, o qual, ademais, excedeu um prazo razoável. (p. 140)
A sentença é categórica em afirmar que
o Estado deve conduzir eficazmente e dentro de um prazo razoável o Inquérito e qualquer processo que chegar a abrir, como conseqüência deste, para identificar, julgar e, eventualmente sancionar os autores da morte do senhor Garibaldi. (p. 169)
E diz, ainda, sobre as suspeitas de imparcialidade e conivência de autoridades, que
o Estado deve investigar e, se for o caso, sancionar as eventuais faltas funcionais nas quais poderiam ter incorrido os funcionários públicos a cargo do Inquérito. (p.169)
A sentença prossegue e comenta os efeitos da não responsabilização dos envolvidos no crime:
A Corte não pode deixar de expressar sua preocupação pelas graves falhas e demoras no inquérito do presente caso, que afetaram vítimas que pertencem a um grupo considerado vulnerável. Como já foi manifestado reiteradamente por este tribunal, a impunidade propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos. (p. 141)
Reparação
Como forma de reparação, a OEA obriga o Estado brasileiro a publicar trechos da sentença no Diário Oficial, em outro diário de ampla circulação nacional, e em um jornal de ampla circulação no estado do Paraná, além da publicação por um ano da íntegra da sentença em uma página web oficial adequada da União e do Paraná. Além disso, com a condenação o Estado se vê obrigado a indenizar a viúva e os filhos de Sétimo por danos morais e materiais e por custos com o processo judicial.
OUTROS CASOS RELACIONADOS
O assassinato de Sétimo Garibaldi foi um dos muitos casos de violência e perseguição a trabalhadores sem terra no Brasil. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA aceitou denúncia de quatro casos do Paraná, o que evidencia a parcialidade com que as autoridades policiais e o judiciário costumam abordar conflitos agrários no estado.
Grampos Ilegais - Além da sentença do caso Sétimo, o Brasil já tinha sido condenado em agosto deste ano na Corte IDH pela instalação e divulgação de grampos ilegais em integrantes do MST, em 1999. O caso também aconteceu em Querência do Norte e teve participação da juíza Elisabeth Khater (veja material informativo em www.global.org.br). O caso das interceptações telefônicas é exemplo emblemático de um processo de criminalização dos movimentos sociais que se intensifica a cada dia no Brasil.
Sebastião Camargo - Ainda neste ano de 2009, em junho, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou na Assembléia Geral da OEA relatório de mérito do caso do assassinato do trabalhador rural Sebastião Camargo, morto em fevereiro de 1998 (sete meses antes de Sétimo), também no noroeste do Paraná. A CIDH apontou a necessidade de uma investigação imparcial e efetiva do crime e acusou o Estado brasileiro de não cumprir suas recomendações.
O assassinato de Sebastião Camargo foi o primeiro de uma série de homicídios de trabalhadores rurais sem terra praticados por pistoleiros. Além dele e de Sétimo Garibaldi, foram assassinados Sebastião da Maia (1999), Eduardo Anghinoni (1999) e Elias Gonçalves Meura (2004), entre outros.
Antonio Tavares - Outro caso que tramita na CIDH é o assassinato de Antonio Tavares Pereira. Em 2000, cerca de 1500 trabalhadores rurais ligados ao MST se dirigiam à cidade de Curitiba para uma manifestação quando foram barrados com extrema violência pela Polícia Militar. Os agricultores foram obrigados a se deitar no chão e, na confusão, muitos ficaram feridos. Antonio Tavares foi baleado no abdômen e morreu em seguida.
A ATUAL CONJUNTURA DE CRIMINALIZAÇÃO
É notável a articulação feita entre setores conservadores da sociedade civil e do poder público para, através do uso do aparelho do Estado, neutralizar as estratégias de reivindicação e resistência das organizações de trabalhadores. O caso das grampos ilegais é emblemático. Em setembro de 2000, o Ministério Público do Paraná, através da promotora Nayani Kelly Garcia, da comarca de Loanda, emitiu parecer que afirma categoricamente que as ilegalidades no processo do caso das interceptações telefônicas “evidenciam que a diligência não possuía o objetivo de investigar e elucidar a prática de crimes, mas sim monitorar os atos do MST, ou seja, possuía cunho estritamente político, em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação”.
A atuação do Ministério Público do Rio Grande do Sul também demonstra uma estratégia orquestrada da criminalização sofrida pelos movimentos sociais, em especial pelo MST. Em dezembro de 2007, o MP-RS iniciou uma ofensiva que tinha como intenção “extinguir” o MST, caracterizado como “organização criminosa de caráter paramilitar” e ignorado como um movimento social consolidado. Usando como base a Lei de Segurança Nacional – adormecida até então desde os tempos de ditadura militar – o MP gaúcho processou lideranças e proibiu que o movimento realizasse manifestações, colunas e passeatas, em clara violação à liberdade de manifestação. A decisão respaldou atos de espionagem e violências cometidas pela brigada militar do RS.
Recentemente, parlamentares, em associação com entidades ruralistas, aprovaram uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que teria o intuito de “investigar” financiamentos públicos recebidos por associações que atuam na promoção da reforma agrária no Brasil. O foco, mais uma vez, seria a deslegitimação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
PARA ENTENDER O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS DA OEA
A Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, rege fundamentalmente o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Qualquer caso de violação aos direitos fundamentais descritos na Convenção Americana pode ser encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), desde que tenham sido esgotados os recursos da jurisdição interna do país referente ou que tenha havido uma demora injustificada nestes recursos. A CIDH tem a competência para analisar as questões que lhe são enviadas e formular recomendações aos Estados no intuito de que haja a reparação dos danos causados e a responsabilização dos envolvidos, e de que se evite que violações semelhantes se repitam.
Em caso de não-cumprimento destas recomendações, a Comissão pode decidir pelo envio do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma espécie de segunda instância do Sistema de DH da OEA. Como um tribunal internacional, a Corte tem competência para julgar a responsabilidade do Estado signatário e determinar o cumprimento de suas resoluções.
O Brasil aceitou a jurisdição da Corte em dezembro de 1998. A primeira condenação ao Estado brasileiro se deu em 2006 e foi referente à morte violenta de Damião Ximenes em 1999 em uma clínica de repouso psiquiátrica localizada no município de Sobral, interior do Ceará. Em agosto de 2009, o país foi condenado no caso das interceptações telefônicas ilegais em integrantes do MST. O assassinato de Sétimo Garibaldi resultou na terceira condenação do Brasil na Corte.
fonte: JUSTIÇA GLOBAL - www.global.org.br
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