Edésio Fernandes e Helena Dolabela Pereira
Criada em 1983 por uma lei pioneira para, dentre outras atividades, promover a regularização fundiária de centenas de favelas e vilas, a URBEL-Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte tem tido uma atuação contínua ao longo desses 27 anos. Apesar das mudanças de governos, e ainda que em certos momentos o órgão possa ter tido maior ou menor influência, o fato é que poucos órgãos municipais no Brasil puderam implementar suas políticas, programas e projetos por tanto tempo. Os nomes dos programas e projetos mudaram – PRO-FAVELA, Projeto Alvorada, Vila Viva...-, mas a política da URBEL tem se mantido, embora tenha sido periodicamente revista.
A URBEL afirma que a sua atuação nos Planos Globais Específicos e outros programas se pauta sempre pelo planejamento e pela intervenção integrada de cunho urbanístico, ambiental, social e de regularização fundiária. Contudo, 27 anos após a sua criação, e a despeito de avanços em outras frentes de trabalho, o órgão não logrou êxito na promoção de regularização fundiária. Os dados são eloquentes: quase 30 anos mais tarde, apenas cerca de 24.000 títulos foram entregues às famílias que vivem em assentamentos informais consolidados, em muitos casos há muitas décadas. Mesmo tendo recebido destaque internacional por sua atuação na área da urbanização de vilas e favelas, e ainda que tenha procurado envolver a participação popular em maior ou menor medida ao longo dos anos, a URBEL fez muito pouco para promover a segurança jurídica da posse dessas famílias. Enquanto desde a década de 1980 municípios como o Recife têm mantido programas de apoio à população carente para o reconhecimento de seus direitos fundiários, a atuação da URBEL na regularização fundiária de assentamentos em áreas públicas tem sido pouco expressiva e somente há pouco foi anunciada a intenção – ainda meramente retórica - de apoiar as ações de usucapião coletivo em áreas de particulares.
Nos últimos anos, a URBEL tem entrado em rota de colisão com associações de moradores, organizações sociais e com a Defensoria Pública, dada a natureza vergonhosa de várias de suas ações em projetos de intervenção estrutural nas áreas de vilas e favelas, removendo milhares de pessoas, com frequência em seguida a práticas de intimidação, recusa de negociação, pagamento de valores irrisórios a titulo de compensação, muito inferiores aos valores de mercado, bem como oferta de “aluguel social” no valor ínfimo de R$300. Famílias estão sendo despejadas depois de viverem por 10 ou 20 anos no mesmo local, tendo recebido um prazo de apenas 30 dias para sairem de suas casas.
O discurso da URBEL nos debates públicos mostra que o órgão ainda não entendeu que, na nova ordem juridico-urbanistica da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade de 2001, existe um direito coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados. Não se trata apenas de uma questão técnica e discricionária do Poder Público, que faz o que quer, quando quer, como quer. Mesmo que os direitos fundiários dos moradores não tenham sido formalmente declarados, a URBEL – afinal de contas, um órgão da “administração popular” - deveria dialogar com eles não como beneficiários de favores do governo, mas como titulares de direitos próprios. Em especial, tal reconhecimento deveria se traduzir no cálculo adequado das indenizações quando a desapropriação for efetivamente necessária, como poderia ser o caso em qualquer outra parte da cidade. Muitos dos projetos de engenharia de grande porte que têm literalmente rasgado várias vilas e favelas no meio – muitos deles ironicamente pagos com recursos do PAC, que deveriam promover inclusão socioespacial – não teriam sido considerados para outras partes da cidade “formal”, não apenas por seus enormes custos se levados em conta os valores reais da indenização, mas também porque a URBEL não ousaria tratar os grupos sociais mais privilegiados da cidade, portadores de títulos fundiários, da forma desrespeitosa como tem tratado os moradores de vilas e favelas. O discurso “técnico” do órgão ainda se refere a “assentamentos sub-normais”, e o fato é que muitos moradores têm sido tratados como cidadãos de segunda classe.
No passado a URBEL alegava falta de recursos, ainda que não tenha feito quase nada para gerá-los por meio das operações urbanas que vendem créditos de construção, ou com a utilização de terrenos vazios, terras públicas e edifícios sub-utilizados para implementar uma política habitacional de interesse social. Agora que os recursos existem, é lamentável ver como esses têm sido usados para excluir, confirmando a tradição histórica da cidade planejada, onde as primeiras favelas foram fundadas antes da sua inauguração, já que não foi feita qualquer reserva de terras para seus construtores. Já é hora da URBEL acordar para a nova realidade jurídica e entender que não bastam argumentos “técnicos”, pois existem direitos coletivos que não podem mais serem ignorados. A julgar pela história, os moradores das vilas e favelas deveriam urgentemente procurar, com o apoio da Defensoria Pública e das Faculdades de Direito, a declaração judicial de seus direitos.
* Juristas especializados em Direito Urbanístico
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